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NOVEMBRO/2006:As imagens do Brasil mediadas por guias de viagem
Cíntia Beatrice Matos da Costa Michelini1
 
RESUMO: Este artigo aborda qual imagem do Brasil é veiculada no exterior através de publicações estrangeiras atuais, além do comparativo dessa imagem com aquela formada pelos relatos de viagens de séculos anteriores.



ABSTRACT: This paper board which Brazil’s image is placed abroad, through current international publications, beyond of the comparison of this image with that produced by the journey’s account of previous centuries.










Neste artigo procurou-se delinear as imagens do Brasil mediadas por guias de viagens publicados no exterior, na tentativa de comparar a imagem atual do país ,divulgada nesse tipo de mídia, com antigos relatos de viajantes estrangeiros que aqui estiveram entre os séculos XVI e XIX , e desta forma verificar se a imagem consolidada do país por esses relatos ( conforme pode-se verificar em artigos anteriores)2 ainda permanece no discurso midiático atual.

Atualmente, existe uma gama considerável de guias de viagem voltados para o mercado turístico. Segundo a revista Veja, só no mercado editorial brasileiro circulam cerca de 500 guias importados3, cada um deles com características próprias que vão ao encontro das necessidades de seu público consumidor, o que muitas vezes transforma-se em sinônimo de estilo de vida.

Os critérios para trabalhar com guias de viagem basearam-se em duas premissas: a primeira é o fato de os relatos e dos guias de viagem possuírem características em comum, ambos são escritos por estrangeiros que permaneceram por períodos consideráveis no Brasil e que têm ou tinham por objetivo apresentar quase todos os aspectos do país de forma neutra, isenta de julgamentos para outros possíveis viajantes.

Assim, uma análise do discurso dos guias de viagem se faz necessária e importante, pois eles captam, transformam e divulgam informações. De acordo com Bethania S.C. Mariani, quando um discurso objetiva a neutralidade "é preciso considerá-lo do ponto de vista imaginário de uma época: pois irá se comportar como uma prática social produtora de sentido, como também, direta ou indiretamente, veiculará as vozes constitutivas daquele imaginário."4

Com relação à segunda premissa, esta considera a popularidade de ambos -relatos e guias- em suas respectivas épocas, e conseqüentes divulgadores de estereótipos5 sobre o Brasil que resgatam, desse modo, o discurso fundador contido nos relatos dos viajantes.

Assim, ao observar a importância dos guias no atual mercado editorial decidiu-se por três: Fodor’s, Lonely Planet e Footprint Handbook , por acreditar que como guias formadores de opinião, eles exercem grande influência na imagem que o estrangeiro faz do Brasil. O recorte para análise privilegiou as seções que apresentam o Brasil e não as seções que descrevem os Estados separadamente, já que o objetivo é obter a imagem do país como um todo.

O guia Fodor’s é de origem norte-americana e possui mais de 700 colaboradores -para a elaboração das informações- ao redor do mundo, publicou mais de 14 séries e 440 guias de viagem, além de, em 1996, ter lançado um site com fóruns de discussão, dicas de viagem, histórico, publicações, etc. O guia é recomendado pela ASTA (American Society of Travel Agent ).

No que se refere ao Brasil, o Fodor’s está em sua primeira edição, lançada em 1999, e até o presente momento (2003) não possui uma versão mais atualizada. De acordo com a própria editora, "o guia sobre o Brasil só foi lançado recentemente, porque somente nos últimos anos está havendo uma campanha forte dos atrativos brasileiros no exterior."

No que diz a análise o Fodor’s encena um Brasil acomodado, que se interessa apenas por assuntos amenos e pouco interesse dá às questões políticas, sociais e/ou ambientais, o que é facilmente constatado no trecho abaixo:


“O jogo contra a França para a decisão da Copa do Mundo de 1998 ia começar quando o super star do futebol Ronaldo teve um ataque epiléptico e não pode jogar. Os brasileiros reagiram como se um terremoto tivesse acontecido. (...) Uma catástrofe nacional, o incidente monopolizou a atenção pública e privada no Brasil por vários meses”



Ora, o jogo de futebol é em todo o mundo uma amenidade, apesar de seu valor profissional e das altas negociações que o envolvem, exceto para os próprios jogadores que fazem desse esporte uma profissão, para todo o resto é considerado uma opção de lazer. As pessoas vão assistir aos jogos para se distrair, precisamente. Portanto, ao enfatizar que “os brasileiros reagiram como se um terremoto tivesse acontecido”, o guia apresenta o brasileiro como um povo que dá muita importância a assuntos considerados não importantes, afinal as conseqüências de um terremoto são traumáticas.O fato ganha mais peso quando o guia diz que o acontecimento “monopolizou a atenção pública e privada por vários meses”, por que, afinal, algo só monopoliza a atenção de todo um povo quando de fato é muito grave e importante, como está acontecendo atualmente com a invasão do Iraque pelos Estados Unidos.

A sugestão de que o brasileiro valoriza demasiadamente as festas, deixando em segundo plano o trabalho, é explícita no seguinte trecho:


“O Carnaval é a maior festa do ano. Em alguns lugares, os eventos começam logo após o Ano Novo e continua além dos quatro dias principais com pequenos festins e festividades. No auge do Carnaval o comércio fecha em todo país, como é costume dos brasileiros (...) e vão para as ruas dançando e cantando.”



O comércio é fechado e segundo o trecho acima, isso é algo tão forte no país que já se tornou um costume. Ora, costume do ponto de vista social é algo que se impõe aos indivíduos de uma sociedade e passa a ser transmitido através das gerações. E quando se fala em transmissão de geração para geração, vislumbra-se algo contínuo no futuro, ou melhor, atitudes que, com o passar das décadas e em alguns casos dos séculos, sempre vão existir. Desta forma, pode-se entender que deixar de trabalhar (fechar o comércio em todo país) e preferir dançar e cantar no carnaval é algo que não vai mudar no Brasil. Além disso, de acordo com o guia, a festa continua muito além dos quatro dias principais.

Assim, verifica-se um retorno às mesmas características, com relação ao povo, apresentadas nos relatos dos viajantes do passado, quando estes fazem referência ao ócio dos habitantes da terra (os indígenas). A questão da preguiça, o reverso negativo do ócio, sempre citada em relatos de épocas anteriores, também aparece no discurso do Fodor’s: “O ritmo de vida devagar na maior parte do país reflete uma apreciação pela família e pelas amizades (...) sabendo disso você irá entender por que as coisas demoram um pouco para serem feitas.” Assim, vislumbra-se um povo que passa a maior parte do tempo conversando mais do que trabalhando e, em conseqüência disso, o ritmo de vida é lento. Entretanto, essa preguiça é considerada com certa tolerância e parece mais um “dolce far niente”6

As praias aparecem como um espaço de socialização cultural já que: “Desde crianças até mulheres em minúsculos biquínis – chamados tangas - e as sungas dos cidadãos de idade, a cultura da praia seduz a todos.” Ou seja, ficar na praia seminu é uma questão de cultura no Brasil, o que por sua vez seduz a todos. Neste a todos, pode-se ler “seduz aos estrangeiros”, já que se isso é uma cultura nacional não tem como seduzir ao povo que já está acostumado, e sim seduz aquele que vem de fora e se deixa levar.

Entretanto, de alguma forma, a parte selvagem e antropófaga desse povo aparece quando os turistas sofrem algum tipo de violência; mais uma vez o estrangeiro é atacado:


"A maioria dos turistas relata que os crimes ocorrem em áreas públicas cheias: praias, calçadas ou praças, estações de ônibus (e nos ônibus também). Nestas áreas, os trombadinhas, geralmente jovens crianças, trabalham em grupo. Um ou mais irão tentar distrai-lo enquanto os outros pegam sua carteira, mala ou câmera (...) e embora eles pareçam jovens podem ser perigosos.”



Apesar de afirmar que as crianças podem ser perigosas, essa periculosidade é automaticamente amenizada pelo próprio termo “crianças”, que, simbolicamente, sempre se refere a algo puro e inocente e tão inocente que para assaltá-lo irão tentar “distrai-lo enquanto os outros pegam sua carteira, mala ou câmera” , ou seja, como se fosse uma típica brincadeira de crianças. Em nenhum momento houve referência ao uso de armas que essas “crianças” costumam usar em suas investidas.

O Fodor’s apresenta ao seu leitor, assim, subitamente o reverso do paraíso e os contrastes nele existentes:


"O Brasil é uma terra fabulosamente rica, mas cheia de desigualdades. Você estará sujeito a ver tanto hotéis cinco estrelas e resorts quanto favelas.”



Também os frutos e pratos exóticos são oportunidade para se voltar ao mesmo tipo de discurso, com ênfase na abundância tropical:


“Um leque natural – do maracujá e do mamão até os gigantes peixes dos rios e caranguejos do litoral – que tem inspirado chefs de todo o mundo.”



E, segundo o guia, toda essa abundância tem razão de ser, afinal:


“Comer é uma paixão nacional, e as porções são generosas. Em muitos restaurantes, os pratos são preparados para duas pessoas. (...) Você irá achar pratos exóticos de peixes na Amazônia, pratos africanos condimentados na Bahia e tutu de feijão nas pequenas cidades de Minas Gerais.”



Esse trecho não deixa de fazer alusão aos rituais antropofágicos do passado, nos quais os nativos se deliciavam ao comer os seus inimigos (no caso dos tupinambás). Acrescente-se a isso o fato de o ato de comer estar relacionado à sexualidade, segundo Mary del Priore7. O que é retomado no guia quando diz que “comer é uma paixão.”

À guisa de conclusão pode-se verificar que o Fodor’s apresenta um Brasil exótico sim, no que diz respeito à natureza, mas não extravagante. Ou seja, um paraíso tradicional, calmo, que não apresenta muitos perigos, pois a natureza não é tão agressiva. E apesar de ressaltar também a generosidade dos alimentos, tão natural em um paraíso, o aspecto mais evidente da apresentação do Brasil no guia é o povo brasileiro. Ou seja, o Fodor’s prioriza a imagem do povo, seja relacionando os aspectos físicos do país com os do povo ou descrevendo suas reações mediante um jogo de futebol, o fato é que o brasileiro é a personagem principal da apresentação do país.

Já a próxima análise foi realizada no “Footprint Handbook”, guia que surgiu em 1921, de origem britânica. A partir de 1990, o Footprint passou a publicar seus guias em séries. Atualmente, encontra-se em mais de 120 países do mundo, mas sua sede continua sendo em Bath, Inglaterra, onde os guias são concebidos e finalizados.

Com relação ao Brasil, somente em 1998, ao perceber uma maior procura por parte do público, a Footprint decidiu lançar um guia que falasse apenas sobre o país (antes o Brasil fazia parte dos guias que falavam sobre a América do Sul no geral). Em 2000, foi lançada a segunda edição do Footprint Brasil Handbbok, sendo que a próxima não tem previsão para ser lançada.

Ao analisarmos o discurso do Footprint pode-se verificar, como no caso do Fodor’s, que novamente o brasileiro é aqui apresentado como um indolente, só que, desta vez, de forma muito mais explícita:


"Para os brasileiros trabalhar, embora obviamente necessário, está muito mais em segundo plano do que aproveitar seu tempo livre assistindo uma partida de futebol, batendo papo com os amigos em um bar da vizinhança, ou improvisando uma sessão de samba que pode ocorrer em qualquer hora e em qualquer lugar.”



De fato, a informação de que “uma sessão de samba que pode ocorrer em qualquer hora e em qualquer lugar”, conota que o brasileiro é capaz de largar tudo por um momento de lazer.

No Footprint a tendência do povo para as festas e o lazer, juntamente com a indolência, está extremamente relacionada à sexualidade com aspecto lascivo, como se vê abaixo:


“Os brasileiros sabem como fazer uma grande festa e a maior festa para todos eles é o Carnaval, que pode acontecer em fevereiro ou março. De fato o ano não começa realmente até depois desse surto de hedonismo no qual a população pode ser indulgente com suas fantasias e esquecer a realidade de sua vida cotidiana.”



O guia é incisivo sobre o Carnaval. Ele desvenda um hedonismo sem culpa ou noção de pecado. Este último trecho reforça ainda mais a suposta sexualidade latente do brasileiro, já que ele libera suas fantasias para esquecer a realidade.

Sempre permeando essa questão como uma característica evidente no povo o guia continua:


“É normal encarar e comentar sobre a aparência das mulheres, e se você parecer diferente ou estiver viajando sozinho, irá sem dúvida chamar atenção. (...) Esteja ciente de que os homens brasileiros podem ser extraordinariamente persistentes , e são muito facilmente encorajados (...)”



Observa-se aqui, obviamente com novas colorações, o resgate dos relatos de viajantes de séculos anteriores que aqui estiveram e descreveram a lascívia e sexualidade dos nativos. Ou eram as índias novas que se deitavam com os conquistadores, ou as índias velhas que iniciavam os meninos nas artes do sexo ou eram os índios que tinham várias esposas, mas o fato é que também eram “muito facilmente encorajados.”

A questão da sexualidade das índias, explícita em sua nudez, e portanto provocante, que em tempos passados foi responsável por vários estupros e pela auto-flagelação dos religiosos é retomada no trecho abaixo:


“Embora os biquínis locais façam a imaginação correr você será detido se tomar banho nu, com exceção se o fizer nas praias oficiais de nudismo, que são poucas.”



Um outro aspecto interessante é o fato de se comparar a beleza das brasileiras com a das estrangeiras e estas últimas sempre apresentarem nítida desvantagem:


“No geral as exigências com roupa são menos formais no Brasil do que nos países hispânicos (...) A moda das mulheres é provocante, e as mulheres viajantes são aconselhadas a adotarem o estilo local de se vestir, e isto pode causar efeitos desencorajadores. (...)”



A apresentação do Brasil como um país sensual, lascivo e, conseqüentemente, permissivo é reforçada quando se observa seu suposto posicionamento liberal com relação à homossexualidade:


“O Brasil é um bom país para viajantes gays / lésbicas, as atitudes são razoavelmente liberais, especialmente nas grandes cidades. As opiniões no interior e nas zonas rurais são mais conservadoras e é preciso se adaptar.”



Toda essa liberalidade apresentada pelo Footprint ocorre em um local de natureza exuberante e quase agressiva, lar das mais exóticas espécies. As belezas naturais do país são sempre apresentadas com muitos adjetivos e superlativos:


“As Cataratas do Iguaçu estão entre as maiores e mais espetaculares do mundo (...) A floresta subtropical à volta delas é rica em flora e fauna, como o quati (...e) e várias borboletas coloridas”



“(O Pantanal) é um dos melhores lugares do mundo para se ver a vida selvagem no mundo. A pesca é excepcional.”



Além de tudo, como não poderia deixar de acontecer, em um paraíso que se preze, a natureza propicia saúde aos seus habitantes:



“(Na Amazônia) ainda existem muitas espécies desconhecidas e a medicina tem achado remédios para muitas doenças através de pesquisas feitas na floresta.”



Assim, os nativos têm sempre a possibilidade de serem superiores aos estrangeiros em saúde e longevidade.



Por outro lado, o guia oferece também ao estrangeiro não só a possibilidade de um paraíso sensual e lascivo (talvez após a Queda) como também um paraíso tradicional (se bem que com menos ênfase) antes da Queda:



“A floresta tropical da Amazônia e as terras molhadas do Pantanal são um lar para uma grande variedade de plantas, animais e pássaros. (...) Praias desertas e dunas em toda a linha da costa ainda podem ser aproveitadas com toda a tranqüilidade de seu estado natural.”



E aí se forja uma imagem típica dos catálogos das agências de viagem que vendem pacotes para o Brasil no exterior: praias desertas, extensas (dunas em toda linha da costa) e quase virgens, além, é claro, da tradicional Amazônia e Pantanal (muitas vezes vendido como Amazônia) e que, obviamente, abrigam as mais diversas espécies da fauna e da flora.



Com menos ênfase, mas ainda assim presente, volta no Footprint a questão da fartura dos alimentos:



“As refeições são extremamente grandes pelos padrões europeus; se seu apetite for pequeno você tem que pedir por uma porção ou um prato vazio e divida a porção.”



O guia não deixa de apresentar o reverso do país, mas é ambíguo a esse respeito, pois primeiro ressalta a cordialidade dos brasileiros com as crianças, afirmando que, por esse amor à família e às crianças, o estrangeiro pode até ser poupado pelos ladrões:



“Viajar com crianças pode fazer com que você tenha um contato maior com as famílias Latino Americanas, e geralmente isso não apresenta problemas, - na verdade o caminho é mais suave para grupos familiares. Os oficiais tendem a ser mais amenos onde as crianças estão concentradas e irão apreciar se as suas crianças souberem um pouco de espanhol ou português. Além disso, igualmente ladrões e trombadinhas parecem ter algum respeito tradicional às famílias e podem deixar você em paz, por causa disso !”



Entretanto, mais adiante, as coisas pioram:



“A segurança pessoal tem se deteriorado em anos recentes no Brasil, em grande parte por causa da provação da economia o crime está crescendo. (...) Você precisa tomar mais cuidado em áreas cheias. (...) Considere comprar roupas locais para não parecer um ‘gringo’. (...) Os visitantes não devem entrar nas favelas, exceto quando acompanhados por trabalhadores de ONG’s , tours, ou outras pessoas que conhecem bem os residentes e sejam aceitas pela comunidade. Certas partes do país são áreas de cultivo de drogas (...) A violência por terra no interior resultou em uma atmosfera de faroeste em algumas cidades, nas quais é melhor passar rapidamente.”



Assim, por um lado, o povo é cordial e dócil o suficiente para poupar o estrangeiro, já por outro o estrangeiro tem que se “travestir” de nativo e respeitar limites territoriais imaginários para ser poupado pela violência.



De uma forma geral o Footprint apresenta um país lascivo e liberal. Estas são as características principais ressaltadas pelo guia. A permissividade é apresentada de forma um tanto agressiva, mas como algo inerente ao país. E complementada pela suposta democracia racial. Esta seria uma das conseqüências dessa liberalidade.



O terceiro e último guia analisado foi o Lonely Planet, um guia independente que surgiu na década de 70 e possui origem australiana.O Lonely Planet Brasil está em sua quinta edição, e data de janeiro de 2002, sendo que a primeira publicação sobre o Brasil ocorreu em agosto de 1989. O espaço entre uma edição e outra é de dois anos.



Dos guias analisados, o Lonely Planet é o que pretende ter o discurso mais realista com relação ao país, e isso pode ser percebido na afirmação de que o Brasil pode não ser o Paraíso na terra. Entretanto, vejamos que não existe uma afirmação incisiva ‘o Brasil não é’ e, sim, ‘o Brasil pode não ser’, o que já relativiza bastante a questão, pois o ‘pode não ser’ abre a possibilidade do poder ser. Porém, essa possibilidade na realidade é forjada, já que mais adiante existe a confirmação de que o Brasil possui características inerentes a um paraíso: florestas inexploradas, praias tropicais primitivas e pessoas alegres, como se verifica abaixo:



“O Brasil pode não ser o Paraíso na terra como muitos viajantes haviam imaginado, mas é uma terra de inimaginável beleza. Ainda existem grandes trechos de floresta tropical inexplorada, e ilhas com praias tropicais primitivas e rios sem fim. E existem as pessoas que agradam o visitante com sua energia, fantasia e alegria.”



A exuberância e riqueza da natureza são representadas pela região da floresta Amazônica. Mesmo que ela esteja sendo devastada suas potencialidades são tão grandes que ainda irão durar anos:



“A floresta Amazônica é maior floresta tropical do mundo, alimentada pelo maior rio do mundo, e lar para o mais rico e diversificado ecossistema da terra – é a última fantasia de um amante da natureza! Apesar da rápida devastação, a Amazônia brasileira ainda oferece anos de exploração para viajantes aventureiros.”



As descrições sobre a riqueza natural do Brasil são abundantes no Lonely Planet, que não deixa de lado a variedade da fauna:



“Quando as águas recuam em março o Pantanal torna-se o playground dos ornitólogos com mais de 200 espécies de pássaros apinhadas: papagaios, tucanos e jabirus são apenas algumas das espécies mais exóticas que podem ser vistas.”



E pode-se afirmar que as descrições sobre a natureza do país prevalecem no guia. Mesmo assim a imagem do tradicional paraíso também se encontra presente:



“As praias são a paixão nacional – todas as coisas e todo o mundo terminam nelas. Felizmente, com mais de 8 mil quilômetros de costas existe um incrível número de esplêndidas praias. Por esse motivo, você terá pouco problema para achar o seu próprio esconderijo tropical.”



Embora o trecho sugira um turismo de isolamento, as praias são novamente um espaço de socialização, já que todas “as coisas e todo mundo terminam nelas”. O guia sustenta que há uma cultura da praia no Brasil.



“O Rio de Janeiro desenvolveu uma avançada cultura do prazer.(...) Isso envolve as mais famosas praias de Ipanema e Copacabana, que estão cheias (...) de pessoas que jogam futebol, se deliciam com uma cerveja gelada e cultuam a beleza do corpo. Esse hedonismo encontra seu climax em fevereiro ou março durante o Carnaval.”



Sustenta também que esse povo, freqüentador de praia é único:



“As várias combinações de elementos produziram uma nação de pessoas espontâneas, amigáveis e desejosas para a vida. Embora toda generalização tenha exceções, poucos visitantes não gostam que os brasileiros estejam no ranking das pessoas mais amigáveis, solícitas e sossegadas do planeta. O tempo não é um dos maiores fatores aqui, e isso é difícil para entender..”



A questão da indolência, a preferência por assuntos amenos e a pouca vontade de lutar por condições melhores, também é perceptível, afinal, “os brasileiros estão no ranking das pessoas mais ... sossegadas do planeta” e complementada no seguinte trecho:



“Os brasileiros têm um excelente senso de humor (...) se você quiser saber sobre o que eles conversam, o que eles falam, você irá descobrir que quase sempre as conversas giram em torno do futebol, críticas ao governo, problemas familiares ou o último capítulo da novela. A língua portuguesa, o amor pelo futebol, carnaval e o som do samba unem os brasileiros. Observe suas expressões quando vão a um jogo de futebol e assistem-no com intensas e variadas emoções (...) a experiência do carnaval e dançar samba e você poderá começar a entender o que é ser brasileiro.”



Outra característica que aparece marcantemente no discurso do Lonely Planet é ainda a questão da sexualidade exacerbada:



“Talvez porque atitudes com relação ao sexo e pornografia sejam mais liberais no Brasil, os homens sentem uma pequena necessidade de provar sua masculinidade nos olhares. O flerte normalmente exagerado é proeminente nas relações entre brasileiros e brasileiras. Vindo dos dois, é sempre considerado um divertimento inocente, sem intenção de insulto, exploração ou intenções sérias.”





“Os brasileiros são bem sossegados quando se trata de questões sexuais. A homossexualidade é abertamente aceita na maioria das grandes áreas urbanas.”



Como não podia deixar de ser, a questão da fartura e exotismo aparece também no Lonely Planet:



“Os pratos brasileiros são servidos com as maiores porções do planeta (...) e freqüentemente podem ser divididos por duas pessoas.”



“Os sucos no Brasil são divinos e variam por região e estação (...) a Amazônia tem frutas que você não vai acreditar (...) existe uma incrível variedade de frutas e combinações, e você pode gastar uma parte do tempo experimentando-as.”



O reverso do Brasil no guia, entretanto, é apresentado de forma mais realista e ressalta as contradições existentes:



“O Brasil é uma terra de grandes contrastes econômicos (...) os brasileiros saudáveis vivem fechados em uma existência luxuosa de primeiro mundo, com casas protegidas por altos muros, cachorros e guardas armados e vão para luxuosos resorts na praia ou para outros países em suas férias. Os brasileiros pobres vivem em favelas ou nas ruas, das mesmas cidades onde vivem os ricos, ou tentam sobreviver da terra e da água em casas simples.”



“O Brasil, com os seus sonhos de grandeza, tem uma escala de comparação com os mais pobres países da África e da Ásia.”



Para o Lonely Planet, fugir do lado negro do Brasil é algo quase impossível:



“Aceite o fato de que você será assaltado, trombado ou ter a sua sacola cortada no Brasil. Se levar com você somente o mínimo para seu uso e não tentar resistir quando tentarem pegar as suas coisas, você não estará em perigo real.”



Entretanto, mesmo com todas as afirmações feitas, ainda assim o guia tenta amenizar a questão da violência no país:



“O Brasil recebe um monte de notícias ruins pela imprensa sobre a violência e alta taxa de criminalidade. Nós achamos que o perigo para os viajantes, enquanto eles fizerem existir, serão exagerados.”



O Brasil do Lonely Planet possui um povo sensual e liberal no que se refere às questões sexuais, mas, ao mesmo tempo, cordial e inocente. Sem deixar de ser também indolente, pois há uma preferência por parte desse povo por assuntos como o Carnaval e futebol. O guia mostra também a imagem de um país cheio de contrastes, principalmente com relação às questões sociais e violento. Porém, o Brasil apresentado é essencialmente natural e exuberante nessa natureza, pois privilegia a fauna e a flora. Por sua vez, essa imagem é reforçada na capa do guia que mostra o pôr do sol em uma região natural do Brasil, possivelmente o Pantanal, onde duas garças repousam solitariamente nos galhos de uma árvore. A solidão do Brasil percebida na foto remete a um local isolado longe de qualquer contato humano.



A partir da análise dos discursos utilizados pelos guias de viagem foi possível delinear a imagem turística do Brasil, que é apresentada no exterior. Imagem esta que ressoa e reforça em muitos aspectos os relatos dos antigos viajantes. Por este motivo, a imagem do país é ainda devedora de uma série de estereótipos que não variaram com o correr dos séculos.



A primeira imagem verificada foi a do Brasil como paraíso. E essa verificação se deu através de determinadas representações mostradas nos guias, tais como: a floresta tropical, exuberante, animais estranhos, plantas exóticas, clima ameno e muita fartura de alimento.



A presença da “imagem clássica” do paraíso tropical, que possui extensas praias de areias brancas, praticamente inacessíveis, com uma linha simétrica de palmeiras, além do mar de águas tépidas, também foi notada. Desta forma, os guias apresentam para o turista dois tipos de paraíso: o “tradicional” -vale dizer praias desertas, palmeiras, etc- e o “selvagem” -vale dizer a floresta luxuriante e abundante- mas em ambos os casos um paraíso.



Uma segunda imagem se refere ao povo, retratado como cordial, alegre, sensual, algo fútil, amigável, acessível, além de belo e festeiro. Entretanto, esta imagem não exclui uma oposta, que apresenta o povo como politicamente imaturo, já que se preocupa mais com o Carnaval, com o futebol e com a aparência do que com assuntos considerados comumente importantes. Forma-se, então, transversalmente a imagem do país do Carnaval e do futebol.



A beleza e sensualidade do povo também têm seu avesso, pois a mulher brasileira é assim estigmatizada pelo turismo sexual.



Por sua vez, a franca convivência racial reforça a falsa idéia de democracia racial. Falsa por que ignora, por exemplo, a luta dos negros e dos índios no resgate de suas memórias, e se esconde por trás dos mulatos e mestiços.



Retomando a questão do país do Carnaval e do futebol, se faz necessária uma reflexão acurada sobre tal imagem. O que é ser o país do Carnaval e do futebol?.



Ora, analise-se o significado do Carnaval, o que é esse evento? Para os guias, apenas uma festa em que as pessoas extravasam as suas fantasias, bebem e dançam a vontade sem se preocupar com regras morais. E o futebol, o que é além de um esporte? A resposta é que ambos, Carnaval e futebol, para os guias, são vazios de significados mais profundos, além de deixarem de lado outras manifestações de fato culturais. Interessam, assim, à propagação de uma imagem de um país fútil em que a assuntos importantes não ocupam espaço na mente da população.



Quanto a uma verdadeira apreensão crítica do Brasil, esta é praticamente inexistente nos guias de viagens, a não ser como fato isolado, assim como a pobreza e a desigualdade social. Do modo como são apresentadas, não chegam a informar significativamente sobre o país.



É possível perceber o legado deixado pelos viajantes estrangeiros que aqui estiveram em séculos anteriores, apresentando-se apenas com novos matizes. Isso vai ajudar na formação da imagem que o brasileiro faz de si mesmo, mas que por ora não comporta maiores reflexões neste artigo, deixando para posteriores esta interessante proposta.



Esta problemática da questão da imagem do Brasil no exterior passa também pela quantidade e qualidade das informações divulgadas. Assim, pode-se dizer que o órgão oficial do Turismo no Brasil, a Embratur, está reforçando esta idéia de que o país é um paraíso tropical, conforme pode ser visto nas fotos em anexo nessa pesquisa. O referido material deixa em aberto uma interrogação sobre como nossos órgãos públicos nos representam para os estrangeiros.



A reflexão sobre as publicações estrangeiras que falam do Brasil é urgente, mesmo que seja somente nas mídias mais relevantes, para que não tenhamos que conviver com as mesmas imagens do Brasil por mais 500 anos.
 
1 Bacharel em Turismo pelo Centro Universitário Ibero Americano e Mestre em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo ( Puc /SP )

2 Ver os seguintes artigos da mesma autora. “Turismo reflexões e Imagem” publicado nesta mesma revista em maio de 2005 e “Origens da Construção da Imagem Pré-concebida dos Estrangeiros Sobre o Brasil” também publicado na mesma revista em novembro de 2005

3 Revista Veja, ed.1.573, 18 nov. 1998, p.78.

4 MARIANI, S.C. Bethania. “Os primórdios da imprensa no Brasil” In : ORLANDI, P. Eni. Discurso Fundador - a formação do país e a construção da identidade nacional. Campinas : Pontes Editores, 1993, p. 33

5 “ O estereótipo é a palavra repetida, fora de qualquer magia, de qualquer entusiasmo, como se fosse natural, como se essa palavra que retorna fosse sempre milagrosamente adequada por razões diferentes, como se o imitar pudesse deixar de ser sentido como uma imitação : palavra sem cerimônia, que pretende a consistência e ignora sua própria insistência. “ BARTHES, R. O prazer do texto. Lisboa : Edições 70, 1974, p.85

6 A questão do ” dolce far niente” é de uma forma geral relacionado aos povos mediterrâneos, mas se enquadra também no contexto brasileiro apresentado pelo guia, já que não possui o aspecto pesado da preguiça, mas sim a leveza da indolência. Uma interessante leitura sobre a questão da estigmatização sofrida pelos povos no discurso dos guias de viagem pode ser encontrada no livro Mitologias de Roland Barthes, quando ele fala sobre o Guide Bleu ( tradicional guia francês ). ( N.A )

7 DEL PRIORE, Mary.(org) História das mulheres no Brasil. São Paulo.Editora Contexto / Unesp, 2000