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O Pulo do Lápis: do guarda-roupa para a pesquisa acadêmica
Mônica Yamagawa1
 
Quem já não recebeu de Natal, agradecimento pela abertura de conta bancária ou ainda, em alguma promoção “leve dois e ganhe”, algum objeto de presente com o logotipo da empresa em uma de suas faces? Provavelmente, todos os leitores. O que difere um presenteado de outro é o destino que este dá a tais manufaturados: usados até o final de suas funções ou eliminados na primeira lixeira encontrada (para desespero dos ambientalistas, uma vez que boa parte deles não é biodegradável). Há também aqueles que após tocarem pela primeira vez o objeto, pelos mais variados motivos, passam a vasculhar antiquários, feiras livres, brechós e leilões virtuais, em buscas, muitas vezes desenfreadas atrás de peças complementares, transformando-os em coleções. Esses não são poucos, é possível verificar esse dado, na quantidade de visitas aos leilões via Internet e tamanho a popularidade de tal obsessão, que é possível conhecê-los e acompanhá-los através de programas de televisão e muitas vezes, cair de costas com os valores gastos.2 Fora essas possibilidades, há quem não compre, não utilize, mas também não descarte e, acumule, ao longo do tempo, pares da mesma espécie mantendo-os, cuidadosamente em caixas de madeira, longe dos filhos pequenos, em armários com chave. Nesse caso, após cinqüenta anos, o que era descartável torna-se bem móvel, e, como qualquer outro documento arquivado no departamento de patrimônio histórico, transforma-se em fonte de informações de uma vida comercial desaparecida dos logradouros. E, os filhos, agora crescidos e alfabetizados, não mais perigosos (“vandalisticamente” falando), ao patrimônio, se apropriam do acervo, na busca do conhecimento que estes antigamente desejáveis brinquedos possam transmitir.



Lápis. Este foi o objeto preservado, por minha mãe, ao longo de meio século, em meio à escuridão de vários guarda-roupas (estes, quem diria, apesar da grandiosidade madeireira, não sobreviveram para contar à minha geração, suas histórias), e que hoje, não somente servem de vestígios de empresas desaparecidas das listas telefônicas e dos outdoors, como se encontram em fase de extinção, substituídas pelas canetas esferográficas, não somente no uso diário, como na preferência dos meios publicitários.
Um exemplo atual sobre a transformação de um objeto de consumo, produto mercadológico, em documento, é o cartão-postal. No Brasil, “L’age d’or de la carte postale” (a idade de ouro do cartão-postal), ocorreu entre 1900 e 1920, e eram impressos por fotógrafos, editoras e empresas. Em São Paulo, estima-se que as primeiras séries foram publicadas na última década do século XIX, pelo Estabelecimento Gráphico V. Steidel & Cia. É é dele, Victor Vergueiro Steidel, um dos postais mais antigos conhecidos de Santos: uma alegoria da estrada de ferro Santos-Jundiaí, datada de 1897.



O cartão-postal, possui um grande repertório de informações, “peça de valor documental e rica fonte de estudo para o conhecimento da paisagem social e humana da época”3. Esses pequenos pedaços de papel cartonado são tão importantes quanto os monumentos, pois, em muitos casos, são os únicos elos físicos, entre o presente e uma paisagem não mais existente. No caso de Santos, o Teatro e Cassino Miramar, o antigo prédio do Mercado (Mercado Provisório) Municipal, os velhos trapiches alfandegários, os carregadores de café e os pescadores e suas redes de arrastão, que desapareceram da cidade, mas que devido às coleções, como a de Gerodetti e Cornejo4, transformaram-se em publicações, disponibilizando ao público a história iconográfica do Estado de São Paulo.



Talvez, esse seja o futuro dos lápis. É certo que uma coleção de cerca de duzentas peças, metade de empresas da cidade, não remontará a história comercial da cidade de Santos, pois “o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada”5, seja da colecionadora ou das empresas que anunciaram seus serviços no cilindro de madeira e grafite.

Diferentemente dos lápis atuais, nos quais são impressas somente as logomarcas das empresas, o espaço, pequeno, continha não somente o nome da empresa, mas seu endereço, telefone, um resumo dos serviços prestados e, em alguns casos, publicidade conjunta com algum produto oferecido:Indústrias de Latas Santos. Reynaldo Mazzeo Importador. R. Xavier Pinheiro,208. Tel: 2 7295, Caixa Postal 741. Telex INLATAS. Fábr. de latas em geral - latas litografadas - Artef. de metais e soda cáustica KING.

Outros, além do endereço da matriz, indicavam os das filiais: Lojas Mahfuz. Matriz Rua João Pessoa, 59. Tel. 2.6057. Filial Praça José Bonifácio, 59. Tel. 2.4454. Mahfuz Nova Rua General Câmara, 98. Homenagem ao Santos F.C.

Comércio de roupas, postos de gasolina, torrefação de café6, importação, açúcar. Provavelmente os clientes dessas empresas em algum momento poderiam fazer suas anotações à lápis, ou então, necessitar dos serviços, porém, no caso de uma funerária, fica o ponto de interrogação: o cliente direto não fará mais uso do utensílio (não tenho registrado ou conhecimento de algo parecido) e os indiretos, gostariam de escrever com algo que lembrasse o falecido? Se o objetivo era um possível futuro consumidor, este gostaria de carregar tal objeto? Na busca de pistas sobre a aquisição, minha mãe não pode ajudar muito (ganhou de “presente” de alguém). Porém, apesar de não ter encontrado outro similar, em relação ao setor, através de seu depoimento, vieram as informações adicionais: a outra concorrente, a Casa Rosário, também utilizava o lápis como mídia publicitária (também fora “presenteada”, com tal relíquia, porém, não consta na caixa). Os caixões ficavam em frente à loja, encostadas na porta da entrada, como hoje encontramos roupas. Muitos evitavam passar em frente à calçada ou então apressavam os passos e os lápis eram entregues para os compradores: Funerais Casa Nsa. Sra. do Monte Serrate. Francisco Narcizo Thomaz. R. Senador Dantas, 187 – matriz. R. Senador Feijó, 189 – filial. Tel. 2.6051. Organização completa para serviços de homenagens fúnebres. Plantão Dia e Noite.

Ao cotejar os endereços impressos na madeira, com dados da lista telefônica comercial, utilizada para divulgação, e que, aos poucos, devido à expansão da Internet, caminha na mesma direção do lápis, somente um dos estabelecimentos comerciais, permanece no mesmo local: Peças e Equipamentos de Refrigeração Forfrio Ltda. R. Júlio de Mesquita, 192. Tel. 2.7892. Válvulas, Conexões, Canos de cobre, Evaporadores, Condensadores, Filtros, Secadores, Graxets, Gases para refrigeração, compressores, controles. Os outros mudaram de endereços ou fecharam as portas.

Ao manuseá-los, começam as perguntas. A indústria de latas ainda existe? O que embalavam? E a soda cáustica KING? O nome Mahfuz não é estranho, mas por que e quando foi essa homenagem ao Santos Futebol Clube? Onde foram parar as casas funerárias? Como são os seus brindes? Francisco Narcizo Thomaz seria o dono da Funerária Casa Nsa. Sra. Do Monte Serrate? Ou um vendedor? Teria a Forfrio fotografias ou um velho funcionário que pudesse contar detalhes do comércio há cinqüenta anos atrás, ou quem sabe até mais? Se as outras empresas mudaram ou fecharam nesses cinqüenta anos, estariam os seus antigos edifícios ainda presentes no centro de Santos? Antes do lápis, quais eram os brindes? E depois deles? Aqueles que mencionavam telex em seus endereços eram os pioneiros, como os primeiros estabelecimentos a anunciarem seus @ (arroba) alguma coisa? Ou possuíam telex por serem empresas importantes? As que sobreviveram aos planos econômicos e às instabilidades do mercado vendem os mesmos produtos? E os lápis, ainda são utilizados como brindes? Durante que período esses estabelecimentos permaneceram nos endereços indicados? Muitas são as questões que saíram do guarda-roupa, juntamente com os lápis. Provavelmente, outras mais aparecerão na busca nos livros, na Internet, nos documentos comerciais, nos jornais e na pesquisa de campo.

No futuro, poderão estar, bem distantes do guarda-roupa, em vitrines de museu. Relíquias que através do presente resgatam o passado, como as fotografias, os documentos impressos, os monumentos, sendo estudadas como tal.

Em tempo: daqui há cinqüenta anos, alguém estará buscando as informações nas canetas esferográficas usadas hoje como brindes. Na falta dos lápis e da caixa de madeira de cigarros7, minha mãe começou a colecioná-las, agora com a ajuda dos filhos.
 
1Bacharel em Publicidade e Propaganda: PUC/SP, Lato Sensu em História da Arte: FAAP/SP, Cursando especialização “Cidade e História: Meio Ambiente, Lazer e Turismo”: UNISANTOS/Santos/SP.
2Chamado no Brasil de “Colecionador Incurável”, o programa de televisão é semanal, sendo transmitido em São Paulo, pela TVA, canal A&E Mundo, mostra desde as mais variadas coleções e colecionadores, leilões, compras em feiras de pulgas, incluindo experts em avaliação.
3FERNANDES JUNIOR, Rubens. “Cartão-postal: o imaginário da cidade de São Paulo”. In: Revista da Biblioteca Mário de Andrade. Volume 54. São Paulo: jan. / Dez., 1996.
4As coleções de cartões-postais viraram uma série de livros, intitulada “Lembranças de São Paulo”. Atualmente, divididas em três volumes: I. A capital paulista. II. O litoral paulista. III. O interior paulista.
5LE GOFF, J. “Documento e Monumento”. In: Memória e História. Campinas: Editora Unicamp, 1994, p. 535-549.
6O café foi durante muitos anos o principal produto exportado através do Porto de Santos. Está presente em vários dos produtos e serviços divulgados nos lápis.
7A caixa de madeira de cigarros ajudou a preservá-los, provavelmente devido ao cheiro, dos cupins que devoraram o armário onde eu os vi pela primeira vez.