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A Religiosidade Profana da Festa de Révellion
Christian Dennys Monteiro de Oliveira1
 
As grandes festas populares, independentemente do grau de participação do Poder Público, cristalizam-se como o principal atrativo para a dinâmica do turismo cultural. Difícil seria imaginar o crescimento turístico do receptivo de um município, com patrimônio histórico-arquitetônico ou físico-ambiental considerável, sem recorrer a sistematização de um ou mais eventos, capazes de popularizar novas ofertas de atrações.

Tal movimento pode sugerir, a rigor, um processo excessivamente artificial de descaracterização dos costumes regionais ou da cultura local. É notório como diversas cidades do estado de São Paulo têm sido obrigada a absorver uma imagem de consumo fácil, centrada em algum evento de demanda externa. Os inúmeros festivais das flores, das frutas, da carne, do tecido, das artes (desenho, cinema, música) e produtos – antes artesanais, depois mercantis – podem completar os mais volumosos guias de programação, ao longo do ano inteiro. Os benefícios que, em princípio, tais eventos proporcionam tornam-se discutíveis demais para tamanho congestionamento de ofertas. O propósito aqui é tão somente constatar a agressiva pulverização dessas festas, desviando o foco do campo simbólico. Campo este, cuja melhor percepção técnica otimizaria as potencialidades mercantis e sócio-ambientais da própria festa.

Façamos uma reflexão a respeito das Festas de Virada de Ano – Révellion tupiniquim – da Baixada Santista. Trata-se de uma concentração de eventos públicos, envolvidos pelo cenário monumental das orlas – de Guarujá, Santos, São Vicente, Praia Grande e demais municípios – e pela demarcação referencial do calendário cristão. O Ano Novo (bom, por princípio), começa na Noite festiva da Confraternização Universal. E em todos os rituais, que magicamente permitem o contato de forças opostas, a possibilidade de algo realmente novo se instala; ainda que de maneira momentânea e mística. Resultado: não há fluxo turístico para a Baixada que supere o Révellion. Como explicá-lo?

A produção de bens simbólicos, discutida por diversos pensadores da sociedade moderna e pós-industrial, tem colaborado para ampliação de ferramentas de análise de tais festividades. No turismo, entretanto, há uma resistência à visualização das interfaces temáticas. Daí o porquê de se imaginar a interdisciplinaridade do turismo como exclusiva ou original. Ignora-se o quanto a psicologia, a geografia, a sociologia, a economia, o direito e uma infinidade de disciplinas só operam seus objetos atuais num emaranhado de múltiplas influências. Todas são tão interdisciplinares quanto ao turismo, como ramo do conhecimento. Inclusive as ciências das religiões, que subsidiaram este breve apontamento sobre o nosso evento-alvo: o Révellion.

Ao contrário de um possível senso comum, a Festa da Virada nem sempre foi esse gigantesco espetáculo de fogos e massas humanas, capazes de lotar as praias como em um dia claro de verão. Aliás, ao contrário do programa de índio, popularizado pela urbanização das faixas litorâneas, o Révellion precisou esperar o clamor turismo de eventos (como negócio) e uma conjunção de fatores promocionais para impor sua visibilidade tão ostensiva. Entre tais fatores encontra-se uma autêntica carnavalização das festas de fim de ano. Processo este que permitiu ao familiar e introspectivo Natal transformar-se em um espetáculo urbano de vendas a amortização de crises econômicas.

O Révellion galgou, sem dúvida, o status de momento especial da catarse coletiva, com todas as unanimidades que a Festa Carnavalesca, mesmo no Brasil, jamais conseguiu alcançar. Não se houve falar de quem não goste da Virada do Ano; nem em grupos que privilegiem esse período para fazer retiro espiritual; muito menos se encontram polêmicas moralistas que procuram barrar suas manifestações. Apesar de toda liberalidade, das viagens, das “baladas” e dos encontros, raras ou mesmo nulas são as campanhas preventivas – à segurança e à saúde – em comparação ao que se destina aos foliões do Reinado de Momo ou a um outro período de feriado prolongado. Que elementos nutrem tamanha unanimidade de apoio ao Révellion, embora seja esta uma festa tão pouco enraizada na cultura brasileira e litorânea?

Um evento, entre tantos de confraternização ecumênica realizados anualmente, em Praia Grande, pela Federação das Tendas de Umbanda do Estado de São Paulo, no 31 de dezembro, talvez indique o caminho dessa explicação. Por ocasião do cortejo de oferendas aos santos – principalmente à Nossa Senhora/Iemanjá – o sentimento de respeito e tolerância superam quaisquer divergência capaz de ameaçar a unanimidade ritual da festa. Grupos de familiares, de amigos, pessoas mais ou menos organizadas, todos dispostos a ver e participar, independente da confissão religiosa, aceitando de bom grado os passes, bênçãos e intenções dirigidas pelos membros da Federação. E em determinado momento, um dos organizadores comentava com seu colega: “...mesmo na Festa de Ogum (no dia de São Jorge, 23 de abril), que faz parte do calendário turístico de São Paulo, há mais de trinta anos, não conseguimos tamanho apoio popular...”

Mais do que um portal duplo – de acesso ao mar e à terra firme – a praia se sacraliza como espaço sagrado, no sentido místico de espaço especial. A praia, no Révellion é palco e teatro de uma Religiosidade Profana. E a Baixada Santista conjuga, no estado, as condições mais privilegiadas para essa renovação cultural e mercantil do turismo religioso.

A primeira idéia que se reconhece de um objeto ou espaço considerado profano, está na oposição ao que é religioso, seja eclesial ou espiritualmente. Trata-se de uma popularização preconceituosa para substituir o termo de agnóstico: aquele que desconsidera qualquer relevância às coisas divinas. A substituição se deve ao fato desse termo não ter um uso tão freqüente quanto à idéia profano, cujo sentido literal, não significa nada além do que sinal ou aviso. Pro-fano é o que antecipa algo sobre alguma coisa. Nada a ver, portanto com a terrível sugestão de profanar, violar, deturpar. Portanto, uma religiosidade profana, que serviria para identificar esse apoio unanimidade para com o Révellion, nada mais é do que um aviso mítico de que a confraternização entre seres tão diferentes é ritualmente possível. Tanto quanto é possível, por exemplo, a realização periódica de Jogos Olímpicos.

A religiosidade, como dimensão da cultura popular e marca das manifestações das classes subalternas, adquire, neste evento, um significado estratégico para avaliação da autenticidade das Festas. Dificilmente encontraremos no Brasil, manifestações religiosas desprovidas de um movimento catártico com momentos profanos explícitos. Mas, incoerentemente, insiste-se em classificar tais momentos como não religiosos. Provavelmente porque ainda se confunde com facilidade o discurso religioso (oficial) com as múltiplas práticas religiosas; as mesmas que são responsáveis pela delimitação de uma religiosidade, tão preliminar e tolerante quanto esta que identificamos como profana.

O grande salto para uma reflexão mais aberta sobre o turismo religioso será constituído a partir do momento em que ousarmos uma mudança do foco sobre esse espetáculo. Os fogos na linha do horizonte e a imagem de helicóptero são tão lindos quando o conjunto de carros alegóricos mostrados pelas câmeras de televisão. Demonstram uma beleza fria, mas impedem a percepção humana da vitalidade e da religiosidade. Uma aproximação mais detalhada desse olhar, feito uma espiada de big brother brazil conduziria esse humanismo para um plano mais envolvente e interessante. Plano esse que o turismo religioso valida com relação simbólica de trocas entre o divino e o banal dentro do próprio ser humano. Que é facilmente compreendido por aqueles milhares de pessoas que fazem o sacrifício de descer a Serra do Mar ou se afastar de suas encostas por tantas horas, só para dar boas vindas a um tempo, psicologicamente delimitado como novo. Mas que ainda não foi sistematizado, minimamente pelos profissionais do evento (poderes públicos e empresas responsáveis).
Essa breve discussão teve apenas o propósito de levantar pontos que conduziriam um olhar mais cuidadoso para os esquemas de convívio entre os participantes da festa, mediante a sua delimitação como uma prática de turismo religioso. Afinal, vê-se nos maiores Santuários Católicos, dentro e fora do Brasil, uma preocupação com este exercício do convívio. Torcemos assim para que nos próximos fins de ano, haja mais acesso às Festas de Révellion, com mais visibilidade aos rituais e menos preocupação com o show de fogos. Afinal, sua artificialidade deveria caminhar sutilmente para extinção, restando nela seus múltiplos rituais religiosos.

Caso contrário... a carnavalização do mesmo irá propor um Révelliódromo para cada cidade litorânea. Ali onde o espetáculo possa competir de maneira confinada. Como uma festa de proveta. E um olhar mais humanístico para o evento fique impossibilitado de uma vez por todas.
 
1Doutor em Geografia pela FFLCH da Universidade de São Paulo e Pesquisador do Centro de Estudos Latino Americano sobre Cultural e Comunicação. Autor do livro “Basílica de Aparecida: Um templo para a Cidade-Mãe” (Olho D’água, 2001) desenvolve atualmente uma pesquisa de Pós-Doutoramento em Turismo Cultural pela Escola de Comunicações e Artes da USP , tratando do Espaço Carnavalesco do Pólo Cultural Grande Otelo, conhecido como Sambódromo do Anhembi.