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Artigo
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NOVEMBRO/2005: Engenho São Jorge dos Erasmos
Fernando Carvalho 1
 
RESUMO: Este trabalho apresenta algumas idéias para o aproveitamento das ruínas do engenho São Jorge dos Erasmos fazendo com que ele se potencialize como um atrativo turístico, educativo e de lazer para a região da Baixada Santista. Com isso, espera-se que o seu valor como patrimônio histórico-cultural seja reconhecido não só no meio acadêmico, mas também por uma parcela maior da população.

ABSTRACT: The subject of this paper is São Jorge dos Erasmos – ruins of an old sugar-mill farm -. Suggestions of activities relate with Tourism, Education and Leisure are presented on this article. The main purpose of these lines is to recognize how important is this place not only by the Academic Circle but, also by the big part of Baixada Santista society.



Introdução

O presente trabalho tem como objetivos apresentar algumas idéias para o aproveitamento do engenho São Jorge dos Erasmos como um atrativo turístico da cidade de Santos e região, bem como fazer com que ele se torne uma opção de lazer interessante para a própria população local.

Dentre as idéias propostas, algumas podem, a primeira vista, parecer bem simples ou até mesmo óbvias, mas não foram implementadas e são de fundamental importância para o êxito da “turistificação” do Engenho dos Erasmos. Como exemplo, podemos citar a ausência de placas indicativas nas ruas sinalizando como chegar ao local. Outras propostas requerem estudos mais aprofundados e, portanto não serão minuciosamente discutidos, em virtude da não complexidade deste trabalho e pela falta de competência do autor para detalhar tais questões.

O primeiro item discorre, em linhas gerais, o que seria um engenho e qual foi sua importância para o Brasil Colônia, Portugal e Europa a partir do século XVI. Introduz também ao nosso objeto de estudo – o Engenho dos Erasmos – e sua relevância dentro do contexto histórico.

O segundo item aborda questões sobre o patrimônio e em que medida este pode (e deve segundo os especialistas da área) ter um aproveitamento social e turístico.

O item seguinte apresenta algumas idéias para estruturação e incremento do Engenho dos Erasmos para o seu aproveitamento dentro da perspectiva de ser um patrimônio arqueológico2 significante e de grande potencial para o usufruto da sociedade.



O que foram os engenhos?

Uma definição enciclopédica concisa do vocábulo engenho pode nos dizer muito em poucas palavras: “unidade agroindustrial da mais antiga atividade rural do País”3 (grifos nossos). Ora, se o engenho foi uma unidade “fabril” da mais antiga atividade rural (a transformação da cana em açúcar), então ele automaticamente se coloca como elemento da maior importância para a compreensão de todo o desenvolvimento do Brasil pós-descobrimento.

Além de abrigar instalações inerentes ao fabrico do açúcar, tais como, a moenda – onde se moia a cana para a extração do caldo (a garapa); as fornalhas – onde o caldo de cana era fervido e purificado em tachos de cobre; e a casa de purgar – onde o açúcar era branqueado (isso só para citar algumas etapas), havia também no engenho várias construções como a casa-grande – moradia do senhor e de sua família; a senzala – habitação dos escravos; e a capela.

Em razão do exposto, sabe-se que o engenho acabava sendo o responsável por uma estrutura que influenciava toda a configuração da paisagem ao seu redor como, por exemplo, a lavoura de subsistência (destacando-se o plantio da mandioca, do feijão e do milho) que coexistia com o plantio da cana para alimentar os escravos e outros trabalhadores do engenho.

Como esses engenhos funcionavam? Que tecnologias utilizavam, ou seja, como funcionava a parte operacional? Quem trabalhava neles? A quem pertenciam? Essas e muitas outras questões devem ser colocadas para a devida compreensão da relevância do engenho na vida econômica4 e consequentemente social, principalmente durante os séculos XVI e XVII.

Apesar de ter sido no Nordeste (principalmente na Bahia e em Pernambuco) e na região de Campos (no Estado do Rio de Janeiro) que se concentrou o maior número de engenhos no Brasil, o Engenho São Jorge dos Erasmos tem algumas peculiaridades que o tornam especial quando se trata de aproveitamento social do patrimônio.



O Engenho dos Erasmos: do século XVI aos dias atuais

O Engenho real5 São Jorge dos Erasmos, localizado na zona noroeste da cidade de Santos6 é provavelmente o primeiro7 engenho do Brasil, construído no século XVI por volta de 1532, através de uma sociedade criada com capitais internacionais por Martim Afonso de Souza e seu irmão Pero Lopes de Souza.

O objetivo desta sociedade era a construção de dois engenhos: um em São Vicente – o então chamado Engenho do Governador – outro em Itamaracá (BA). Participaram da organização do engenho de São Vicente: Johan van Hielst representando a família Schetz de Antuérpia, Francisco Lôbo e Vicente Gonçalves. Após alguns anos Martim Afonso de Souza reorganiza a empresa que denomina-se Armadores do Trato, e o engenho passa a ser conhecido como “dos Armadores”. O comerciante e capitalista flamengo Erasmo Schetz adquiriu a propriedade de São Vicente, em sociedade com van Hielst, em torno de 1540. É quando o engenho se consolida e incorpora a denominação pela qual passou a ser conhecido: Engenho dos Erasmos.

A crise que afetou a cultura do açúcar em São Vicente, no final do século XVI, atingiu também o empreendimento da família Schetz, que entra em decadência.

Depois de uma sucessão de diversos proprietários e um longo período de quase esquecimento, na década de 1950 sua importância como documento histórico, arquitetônico e tecnológico passa a ser reconhecida.

Artigos da historiadora Maria Regina da Cunha Rodrigues na imprensa, o envolvimento do Distrito do IPHAN em São Paulo, através de seu diretor, o arquiteto Luís Saia, e a mobilização de interessados em Santos e São Paulo resultaram na doação da área onde se localizam remanescentes do Engenho, pelo seu proprietário Otávio Ribeiro de Araújo, em 1958, à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

Nas quatro últimas décadas as ruínas do Engenho alternaram momentos de respeito e proteção, como as obras realizadas pelo IPHAN, dirigidas por Luís Saia no início da década de 1960, com situações de perigo e agressão, como os serviços de terraplanagem e desmatamento irregulares, executados em 1987 por uma empresa imobiliária, que destruíram parte do sítio arqueológico e afetaram a estabilidade do terreno e de parte das próprias ruínas.

Atualmente, as ruínas do Engenho ocupam uma área aproximada de 3.250 m², no sopé do Morro da Caneleira ou Nova Cintra, em local estratégico para receber as águas de cachoeira da vertente norte desse morro e próximo ao rio São Jorge, com acesso rápido ao canal e ao mar .



Patrimônio, Arqueologia e o Engenho dos Erasmos

A noção de patrimônio cultural, massificado atualmente pela mídia, remete o senso comum a algo que deve ser preservado por representar um elemento de importância histórica para a sociedade em que se encontra. Pois bem, o que costuma ser negligenciado no conteúdo dessa informação é o fato de que o patrimônio depende de uma escolha, e essa tarefa sempre coube às classes dominantes que “o tornam um campo de exercício de poder” .

Essa postura costuma deixar os grupos sociais que possuem pouca ou nenhuma influência política impedidos de terem seus símbolos de memória preservados. A passagem abaixo deixa clara essa situação no Brasil na década de 1940:



“O patrimônio eleito e construído pela elite era um atrativo para a própria elite. Ela podia decodificá-lo e usufruir dele em viagens. Quando muito, para os outros, ele seria um instrumento de pregação cívica nas escolas, um eco dos grandes feitos, da ordem, do sentido religioso dos brasileiros, da concórdia, etc.”




De forma semelhante, no que diz respeito à sua criação, a arqueologia surgiu através da “força motora da nova ordem política, social e econômica da Revolução Industrial” . Embora a arqueologia trate “das pessoas comuns, dos indígenas, sob uma perspectiva menos enviesada do que a prevalecente nas fontes escritas” , é consensual – sejam por razões econômicas ou meramente ideológicas – que “a arqueologia é sempre política e responde a necessidades político-ideológicas dos grupos em conflito na sociedade contemporânea.”

Considerei necessário este preâmbulo para chamar a atenção da necessidade de sair do antigo modelo de visão elitista, imposto de cima para baixo, da eleição e classificação do patrimônio cultural (onde obviamente o patrimônio arqueológico está inserido – neste caso especificamente no caso do Engenho dos Erasmos) e nos esforcemos para transformá-lo num objeto que desperte a identificação e o conseqüente interesse da sociedade.

O papel que o patrimônio desempenha na sociedade tem mudado sensivelmente nos últimos anos, bem como o papel da ciência arqueológica, como afirma Funari:


“[A arqueologia] hoje mudou muito e tem servido para o pensamento crítico, para a diminuição das desigualdades e para o respeito à diversidade étnica e cultural.”



Creio ser este um dos caminhos possíveis a ser seguido pela universidade que o administra (USP) juntamente com as universidades parceiras e o poder público.

No item seguinte sugerem-se algumas medidas que, dentro do que seja cabível na prática, poderiam ser adotadas para a democratização do Engenho dos Erasmos.



Turismo e Educação no Engenho dos Erasmos

Melhorar a atratividade do patrimônio cultural em relação à população prescinde de medidas que caso não sejam bem planejadas e executadas com critério, correm grande risco de fracasso. Para tanto (além de estudos mais detalhados no que diz respeito à capacidade de carga por exemplo) algumas ações mais simples já poderiam ser tomadas o quanto antes.



O Engenho dos Erasmos e o Turismo

A intenção do aproveitamento do Engenho dos Erasmos não pode ser pensada de outra maneira que não seja o chamado turismo organizado. Mediadas por agências de viagens, as visitações ocorreriam somente em grupos com quantidade de integrantes pré-estabelecida e previamente agendados.

As visitações ao Engenho dos Erasmos iriam ao encontro do novo posicionamento mercadológico que as cidades de Santos e São Vicente vêm buscando – o turismo histórico/cultural. Porém, são necessárias ações para tornar o Engenho atraente e preparado para receber o turista, tais como:



• Sinalização de trânsito indicando o caminho até o Engenho;
• Instalações sanitárias adequadas à demanda;
• Pontos de água potável distribuídos pelo local;
• Exposição de artefatos encontrados através dos estudos arqueológicos;
• Maquete maior do que a que já existe no local e reproduzindo como possivelmente era a configuração do Engenho em atividade;
• Serviço de monitoria (já existente e de excelente qualidade);
• Promoção e divulgação do local através da Secretaria Municipal de Turismo.



Esses são só alguns exemplos do que se faz necessário para adequar o Engenho dos Erasmos num local que desperte o interesse turístico. Acredito que tudo isso é possível, pois o potencial da demanda é verificável em basicamente três vantagens competitivas que o Engenho possui em relação aos demais engenhos do Brasil. A saber:



• Expressividade do atrativo turístico: em virtude das cidades de Santos e São Vicente já estarem envolvidas em se relacionarem ao forte referencial histórico que desempenham no Brasil;
• Distância em relação aos emissores de turistas: como a maioria dos antigos engenhos está localizada em Pernambuco e na Bahia e alguns no Rio de Janeiro, a pouca distância do Engenho dos Erasmos em relação ao maior centro emissor de turistas do Brasil – a Grande São Paulo – o põe em vantagem para receber este público;
• Custos envolvidos e demanda de tempo: o fato da pequena distância influi diretamente no custo e no tempo solicitado para realização destas viagens.



O Engenho dos Erasmos e a Educação

Apesar das dificuldades de aperfeiçoar o aproveitamento dos espaços de educação não-formal pelos alunos, parece serem inegáveis as contribuições que as saídas de campo (também conhecidas como estudo do meio) podem dar à escola. Uma dessas contribuições é o incentivo à formação intelectual do aluno, despertando neste o interesse ao estudo das matérias escolares tradicionais; com diz Krippendorf:



“O aluno aprende a ver, a compreender e a respeitar a natureza e o modo de vida do próximo. Através da geografia e da história, descobre o espaço e o palco dos acontecimentos...”




Aqui, mais uma vez, tornar o espaço do Engenho dos Erasmos mais palatável aos visitantes (neste caso aos alunos, através de instalações como as já citadas) se faz fundamental, assim como o treinamento de professores e as visitas monitoradas, pois “... a simples oportunidade de constatação de realidades estranhas pode ser insuficiente para que elas se tornem, de fato, conhecidas.”



Considerações Finais

Incontestável dizer que a situação de conservação do Engenho dos Erasmos melhorou muito nos últimos anos, já que esteve em estado de completo abandono por mais de três séculos (!). Hoje se reconhece sua importância como sítio arqueológico e as pesquisas nele realizadas e os estudos a seu respeito são cada vez maiores e mais surpreendentes.

Não se trata de fazer com que o Engenho dos Erasmos perca a sua função de sítio arqueológico e tampouco que a Universidade deixe as pesquisas em segundo plano, também acho compreensível que os pesquisadores fiquem reticentes de abrir o sítio de pesquisa como um produto comercial. Mas a questão é simplesmente fazer com que o local se torne mais acessível ao público em geral e mais proveitoso para os escolares. É apenas uma questão de acreditar nos benefícios que o patrimônio pode proporcionar à sociedade através do turismo, do lazer e da educação.

Caso as idéias apresentadas neste trabalho não sejam as mais adequadas (tampouco são as mais brilhantes), é preciso que as propostas surjam para corresponder às necessidades da população e ao patrimônio da grandeza do Engenho dos Erasmos.
 
1 Bacharel em Turismo pela Unimonte – Santos e aluno do curso de pós graduação lato sensu “Cidade e História: Patrimônio, Lazer e Turismo”, da Unisantos.

2 O Engenho São Jorge dos Erasmos é tombado como patrimônio arqueológico em três instâncias, a saber: SPHAN, Proc. 678-T, inscrição n.º 360, Livro Histórico, fl. 59, em 2.VII.63, CONDEPHAAT, Proc. 362/73, CONDEPASA, Livro Tombo 01, inscrição 07, fl. 2, Proc. 1673, Resolução SC 01/90.

3 Grande Enciclopédia Larousse Cultural, 1987, p. 2146.

4 Durante o século XVII, o açúcar exportado pelo Brasil rendeu cerca de 200 milhões de libras – mais que a mineração do ouro.

5 Os engenhos reais eram movidos a roda d’água; os trapiches eram puxados por bois; os bangüês eram os engenhos a vapor (usados a partir de 1817). O engenho que deixava de funcionar por qualquer motivo, era chamado de fogo-morto.

6 Na época em que foi construído o território pertencia a São Vicente.

7 Embora alguns historiadores afirmem que já em 1521, um engenho pioneiro de Pernambuco exportou pequena quantidade de açúcar para Portugal.