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OUTUBRO/2006: Perspectivas do Olhar, na voz do Imigrante Espanhol
Dolores Martin1
 
RESUMO: Este artigo é parte da dissertação de mestrado pela PUC SP, e destaca as entrevistas dos imigrantes espanhóis vindos no pós-guerra Civil Espanhola e II Guerra Mundial. Procura dar voz a quem ousou buscar melhoras, e mostra os diversos olhares dos que chegavam curiosos, cheios de esperança, numa cidade que oferecia amplas oportunidades onde se formava o maior parque industrial da América Latina e que viria a ser a capital da Gastronomia, pela diversidade cultural de seus pratos, produto da mescla de cozinhas das diversas imigrações recebidas.





ABSTRACT: This article is part of the dissertation from my Masters in History at PUCSP, it highlights the interviews of Spanish immigrants who arrived in the city of Sao Paulo after the Civil Spanish War and World War II. It has the intention of giving voice to the people who dared to dream of better living conditions, and it also shows the several curious views of the ones who arrived in the city, full of hopes, in a place that offered great opportunities and principally where the biggest industrial area of Latin America was being formed, and that would become the capital of Gastronomy, because of the cultural diversity of its cooking, result of the mixture of foods from the several kinds of ethnic groups that made this city their place to live.










Muitos espanhóis emigraram ao Brasil no período pós-guerras: a Civil Espanhola e a II Mundial, de 1946 a 1965, uma das mais difíceis fases da economia européia após longo período de guerra 1939-1945. Apesar de negativa em relação aos países europeus, a crise significou um dado positivo para países como o Brasil, que via suas ofertas serem aceitas por um grande contingente de trabalhadores que fugiam da situação estabelecida. São Paulo necessitava mão de obra especializada e conforme o Ministério do Trabalho:


“de 1945 a 1960 chegam ao Brasil 103.930 espanhóis, grande parte desta mão de obra especializada contribuiu para a formação do parque industrial, nas indústrias automobilísticas e de autopeças, siderúrgicas e de eletrodomésticos, suprindo a necessidade manifesta do mercado de trabalho de trabalhadores industriais qualificados”.2



Os motivos que os levaram a emigrar quase sempre estavam ligados a uma vida melhor, com perspectivas de trabalho, que eram visualizadas em São Paulo neste momento, a cidade das oportunidades, como neste relato:


“Não vim para o Brasil ou para outro lugar de graça, a não ser que você tenha espírito de aventura, mas os imigrantes que vieram naquela época, até a década de sessenta, vieram aqui para melhorar de vida, estava difícil lá viver, alguns vieram por motivos políticos sem dúvida nenhuma, a maioria não, a maioria veio para fazer a América, como se falava na época, melhorar de vida. O trabalho que não tinha, poder comer que tinha pouca comida, e sobreviver”.3


A viagem empreendida pelos imigrantes espanhóis propiciou a cada um, diferentes perspectivas no olhar. Emilio assim se expressou: “Do barco eu via a Espanha se distanciando...”4 O olhar de despedida à sua terra, que via afastando-se cada vez mais, sem se dar conta de que era ele quem se distanciava, motivado pelas marcas em sua memória provocadas pela Guerra Civil Espanhola.

Rosita, filha única, de apenas doze anos, acompanhada dos pais, disse: “Uma saída muito triste muito masoquista. Porque tocou a música “El imigrante” de Juanito Valderrama o tempo todo, um dramalhão espanhol com todo mundo chorando”.5

O ano de 1939 foi marcado pela perseguição aos que pensassem em manter seus regionalismos idiomáticos e de costumes, com o espetáculo das prisões e de campos de concentração, da pressão moral que ainda vive na memória, no testemunho daqueles que passaram pela experiência, como Matilde relatando o que lhe disse sua mãe:


“O acontecimento eu não lembro, minha família é quem fala, que meu pai foi para um campo de concentração e minha mãe deu à luz e ele não estava presente, foi num dia primeiro de janeiro uma data especial, e meu pai veio de Barcelona, ia passar por Valencia. Ele conseguiu comprar um lugar na janelinha, e minha mãe sabia que ele ia passar, e me mostrou a ele pela janelinha (olhos cheios de lágrima). Por isso que o imigrante dá tanto valor ao trabalho, respeito, porque aprendeu justamente pelo que passou lá na guerra. Na guerra é triste”.6



O drama vivido por esta família calou na memória da esposa tentando mostrar o bebê que nascera ao pai, cujo olhar atento, estaria posto na parada do trem que passaria por Valencia, na tentativa de conhecer a filha.

As memórias relatam as dificuldades para conseguir o alimento, fazendo-os permanecer em longas filas, na época da guerra: “Mi madre repelaba la botella, para la gente comer, pasamos tres años de mucha hambre. Había fila para carbón, para leche, para el pan cada día, no había nada para comer solo naranja, zanahoria cocida y pasamos mucha miseria”.7 Parafraseando Halbwachs, não é na história aprendida, é na história vivida que se apóia nossa memória.8

A fome, a vida difícil, a falta de empregos, fuga do serviço militar, aparecem na fala dos depoentes: “En verdad fue el problema de la guerra, y todo eso, España estaba muy mal y para negocio no daba”9. Baltazar descreveu: “Nem a lavoura não dava nada, nem batata, era fome em todo lugar”10. Para preservar o filho único de situações difíceis ligadas às guerras e ao serviço militar os pais do chef Don Pepe, então com doze anos, emigraram. “Sou nascido em Málaga, mas vivi no Marrocos na África, e os árabes marroquinos sempre invadiam os sítios e fazendas matando pessoas e a rebelião, o exército ia lá e castigava os marroquinos. Como sou filho único a minha mãe e meu pai, acharam melhor vim embora da Espanha, porque já tinham passado a guerra civil espanhola, e a Segunda Guerra Mundial, então eles acharam que podia acontecer alguma coisa pior, queriam me preservar.”11 Com a perspectiva de evitar um sofrimento ao único filho, o casal emigrou ao Brasil.

A mãe de D.Maria recebia soldados em sua casa e cozinhava os alimentos por eles trazidos, talvez por ter seu filho desaparecido na guerra:


“Mi madre metía los soldados en la casa con piojos, para tener café, comida para eles, porque traían en litros de ellos, traían arroz, aceite, café, garbanzos, para ellos. Llenos de miseria y todo. No teníamos nada para comer. Teníamos zanahoria, solo frita, solo frita con cebollas, no tenía aceite no tenia na…. Mi hermano el más viejo, que ya murió, también estuvo un año pegado a nosotros, y tuvo un año que no sabía si estaba muerto si estaba vivo”.



Muitos saíram de seu país sem nenhuma referência como o relato: “Era obrigatório o serviço militar e eu não queria perder três anos da minha vida. Galicia era pequena para tantos galegos e víamos um futuro difícil após a Guerra Civil e a Segunda Guerra Mundial, parecia que o futuro estava na imigração”12. Existem lembranças de fartura na Galicia, com uma população excedente que acabou por provocar os deslocamentos.


“A Galicia tem uma economia de subsistência, nós produzíamos o porco, o frango, o leite, o cordeiro, porque tínhamos a vaquinha, a horta, o vinho, o trigo para moer e fazer o pão, então nos tínhamos todos os alimentos, o único que nos faltava era o açúcar e o azeite que não havia porque o resto tinha de tudo. Inclusive fazíamos queijo, queijo de vaca, famoso queijo galego tetilla, então eu me alimentei a base destes produtos. Minha infância foi criar-me felizmente com estes produtos, porque meus pais eram agricultores e nós comíamos muito bem e crescemos alimentados”.13



Infância de fartura à mesa, onde os produtos essenciais não faltaram, também no Marrocos, onde alguém não imaginaria um dia usar os ensinamentos aprendidos na infância, profissionalmente:


“Comia muita carne de baleia que é igual à carne de boi, só que tem um pouco mais de sangue, aprendi tudo com a minha mãe, tudo o que eu sei. Passei uma infância feliz, vivia num lugar com porto, praia, campo, montanha, pouca criança na vida passou igual a esta, no meio dos morros, das montanhas, vivia na praia, pegava espiga de trigo, pegava rã, enguia, pescava. Meu pai pescava peixe grande, polvo, e aprendi a limpar peixe, a preparar uma série de coisas, a salgar peixe, preparava azeitona em casa, baldes de azeitona em conserva. Salgávamos peixe, tomate, carne. Minha mãe não comprava nada morto, aprendi a matar e preparar animal, como frango, cordeiro e cabrito”.14



Assim, o chef Don Pepe recebeu dos pais, os ensinamentos para preparar e elaborar os pratos que iriam fazer parte de seu cotidiano no Brasil.

A Missão Católica encarregou-se de reunir familiares separados pela imigração, como Aldariz que aos dezesseis anos viajou sozinho para encontrar-se aqui com a mãe que havia imigrado antes. Maruja aos onze anos acompanhada de um irmão de oito anos, também viajou para encontrar-se com seus pais, que estavam no Brasil há sete anos.


“Desembarcamos em Santos, e eu não conhecia os meus pais. Minha avó e tio me deram uma foto da minha mãe, com uns dezessete anos, de cabelo longo. Meus pais estavam do lado de meus tios. O comandante perguntou quem eram meus pais. Eu vi uma mulher estranha, mas aquela mulher não era minha mãe. Eu falava pro comandante: aqueles dois. Ele disse: são dois homens, e a mãe? E eu confirmava: Si, son mis padres aquellos dos. Eu apontava pro meu tio Jesus que eu queria que ele nos assumisse para não voltar pra Espanha”.15



Algumas famílias vieram completas influenciadas pela propaganda feita por aqueles que retornavam como Rosário de 11 anos: “Um destes que estavam aqui, foi passear e meu tio convenceu, que a gente viesse, porque a terra era muito boa, quem trabalhasse conseguiria fazer a vida, e com esta ilusão viemos”16 . O mesmo aconteceu com Rosita, pois seu pai vendeu a casa que possuíam para comprar as passagens de navio: “Já havia pessoas da minha cidade que estavam aqui e meu pai tinha já uma certa referência”.17

Outros vieram sós, com referências ou não, como o relato emocionado do sr. García, que informou sua decisão de emigrar a seus pais em León, por carta: ”Sin mis padres saber sin nada, junto a la maleta un envelope lacrado, aquel lacre con la llave. En Barcelona, yo embarqué, puse una carta en los correos diciendo: Estoy yendo para América”.18 Estava morando em Madri e descontente com seu trabalho, relatou emocionado que ao tomar a decisão de emigrar, entrou em uma agência de turismo pedindo sugestão à atendente, que lhe disse: "Porque não vai para o Brasil?" Embarcou então no dia seguinte, aos 24 anos.

Estes imigrantes tinham melhores condições sócio-econômicas e de escolaridade, que as do grupo anterior, chegando até a vir por companhia aérea como aconteceu com o sr. Baltasar.19 No olhar da criança que buscava seus pais, do adulto que viajando com ou sem referências na cidade grande, ávido de trabalho e de ascensão social; da mãe que somente buscava reconstruir sua família e criar seus filhos em um país de paz e fartura, surge a cidade que de braços abertos os recebeu, mesclando culturas que terminaram por classificá-la como a Capital Gastronômica da América, por conta da variedade de cozinhas que aqui se estabeleceram.
 
1 Pedagoga. Especialista em Língua Espanhola e Mestre emTurismo. Mestre em História PUC/SP. Profa. de Espanhol na Faculdade de Turismo e Hotelaria SENAC e de Espanhol e Alimentos e Bebidas na FAAC/SP.

2 Ministério do trabalho. A Integração de Imigrantes Altamente Qualificados e a sua Contribuição ao Desenvolvimento Social e Econômico. Força de trabalho: Avaliação e Planejamento. Brasília, 1974. p.9. In: AGUIAR, 1991,p.211.

3 José Maria Aldariz Gutierrez, entrevista concedida à autora em 27 de dezembro de 2004, Ipiranga, São Paulo, às 15hs. Asturiano veio só em 1959, aos dezesseis anos, para encontrar-se com a mãe que vivia no Brasil. Com a morte do pai num acidente de trabalho em mina de carvão ele foi para um colégio interno.

4 Emilio Fernández Cano, entrevista concedida à autora em 22 de dezembro de 2004, Casa de España, São Paulo.14hs. Madrilenho, de 75 anos, professor de espanhol na Sociedade Hispano-Brasileira. Veio sozinho aos 24 anos, por motivos políticos numa emigração espontânea a São Paulo, por ser uma cidade grande e cheia de oportunidades. Engajou-se nas passeatas promovidas pelos alunos da USP sempre combativo às propostas ditatoriais.

5 Rosa Vidal Gonzalez, a Rosita, entrevista concedida à autora em 21 de fevereiro de 2004, Jardim Bonfiglioli, São Paulo, às 14hs. De 62 anos, veio aos doze anos de idade de Valencia, acompanhando os pais. Foi costureira, hoje não trabalha e mantém as tradições gastronômicas espanholas e como valenciana prepara a paella, seguindo a receita de sua mãe.

6 Matilde Blat, de 67 anos, entrevista concedida à autora em 30 de julho de 2004, São Paulo, às 16hs. Veio de Valencia em 1955, com dezessete anos, acompanhada do pai, da “segunda mãe” e de um irmão menor. O pai perdeu tudo, partiu então para o Brasil, atendendo ao chamado de uma irmã. Começou como cabeleireira e hoje é proprietária e chef do Restaurante Açafrão e Cia., onde diariamente reproduz a cozinha espanhola e a tradicional paella.

7 Dona Maria Catalina Paez García, entrevista concedida à autora em 11 de janeiro de 2005, Casa de España, São Paulo, 15hs. Veio de Murcia em 1952, com vinte e quatro anos, hoje com setenta e seis anos, com a filha mais velha, para encontrar-se com o marido que já estava aqui a trabalho. O marido costumava fazer paella para amigos e família, e ela continuou com a tradição depois da sua morte.

8 HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Vértice. Ed. Revista dos Tribunais, 1990.p.60.

9 Sr. Francisco Dominguez, Don Curro, entrevista concedida à autora em 21 de outubro de 2001, São Paulo. Andaluz de Sevilha com 91 anos de idade, hoje falecido, foi toureiro espanhol em sua cidade natal. Veio em 1957 com a esposa e quatro filhos. Comprou um bar, hoje o restaurante Don Curro, o mais antigo e renomado restaurante de cozinha espanhola da cidade.

10 Sr. Baltazar Macias Garcia, entrevista concedida à autora em 4 de abril de 2005, Casa Garcia, São Paulo, às 12hs. Vindo de Lomba, Leon, da região de Castilla y León em 1958 com 29 anos, de avião pela Cia. Ibéria. Era garçom num hotel do El Escorial e veio para trabalhar no Othon Palace. Estabeleceu-se na venda de produtos importados, sócio na Casa Garcia há 40 anos, hoje com 76 anos. Viveu os anos da guerra e se recorda das dificuldades por que passou”.

11 José Luis Almanza Esquetino, Don Pepe, entrevista concedida à autora em 11 de janeiro de 2005, Restaurante La Alhambra, São Paulo. às 17hs.

12 Sr. Belarmino Fernandez Iglesias, entrevista concedida à autora em 24 de janeiro de 2005, Restaurante A Figueira, São Paulo, às 14hs. Emigrou sozinho com vinte anos, em 1951, de Rosende, província de Lugo na Galicia hoje com 74 anos. É um dos renomados empresários espanhóis com os restaurantes Rubaiyat e A Figueira, um marco da gastronomia espanhola na cidade. “Fui para uma pensão no Brás. Uma cidade que crescendo, via que tinha potencial. Não escolhi o Brasil queria ir para a Venezuela, mas o cônsul nos proibiu, foi sorte”.

13 Idem.

14 José Luis Almanza Esquetino, Don Pepe.

15 Maria América Millás San Miguel, Maruja, entrevista concedida à autora em 17 de dezembro de 2004, São Paulo, às 10hs. De 55 anos veio da Galicia em 1961, aos 11 anos de idade, acompanhada de seu irmão de nove anos, sob cuidados da Missão Católica para encontrar-se com os pais que haviam emigrado sete anos antes, os quais não mais conhecia.

16 Rosário Gutierrez Esteves - Veio de León em 1962 com onze anos de idade acompanhando seus pais. Organizadora das festas regionais do Clube Espanhol preocupa-se com as tradições e a manutenção dos pratos típicos em festas.

17 Rosa Vidal Gonzalez, a Rosita.

18 Francisco Blanco García, entrevista concedida à autora em 4 de abril de 2005, Casa Garcia, São Paulo, às 10hs. Em 1954 veio de Leon, de Belluza. Sentiu-se roubado em negócios e resolveu sair espontaneamente da Espanha. O destino Brasil foi oferecido pela atendente da agencia de viagens de Madri. Começou trabalhando em quitanda, há 45 anos é sócio proprietário da Casa Garcia, de produtos importados.

19 Baltazar Macias Garcia.