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NOVEMBRO/2005: O Capital Intelectual das Empresas Turísticas2
Haroldo Leitão Camargo1
 
RESUMO: O Turismo é um dos objetos temáticos em relação ao Patrimônio, num breve exame das peculiaridades empresariais na área, procura-se apontar que, certas singularidades sociais brasileiras e tradicionais, são persistentes e não se reduzem às ordenações do capitalismo globalizado, mas constituem estas, tão somente uma fachada ou simulacro de modernização, apenas disfarçam ou mascaram o velho, não se ajustam, ou aqui se ajustam mal, às fórmulas empresariais importadas, que de resto são proposições, no mínimo discutíveis.

ABSTRACT: Tourism, Cultural Heritage and Private Entreprises. The triangulo of these three activities are the subject of this article. Modern business ideas are a kind of front line mask to the same and old business rules that have been used by the companies in the current market.

A proposta de uma discussão que permeie a universidade e a empresa é uma excelente oportunidade para reconhecer a distância que ainda se interpõem entre as instituições que geram, discutem e difundem os conhecimentos procurando a transformação dos homens através da educação e aquelas que deles se utilizam, dos homens e, do seu conhecimento, para a aplicação prática deste último no cotidiano, como instrumento de geração de riquezas materiais por meio da prestação de serviços.

Creio que este é um momento privilegiado para refletirmos sobre as formas de transpor, o território vazio, o hiato que nos separa. Em outras palavras, hiato que separaria a “teoria” da “prática”, o que não define com a necessária legitimidade o problema, pois, o conhecimento é uma totalidade que só se divide idealmente. Dado que, efetivamente, não sendo possível conceber práticas alienadas dos seus fundamentos, a natureza das relações entre prática e teoria é dialética.

Assim sendo, como consecução de objetivos, após a tentativa de entender o significado da expressão “capital intelectual”, gostaria de alinhar algumas observações referentes ao conhecimento e à informação, ao tempo da reflexão e o tempo da ação para as tomadas de decisão, o que parece assinalar diferenças consideráveis entre a escola e a empresa e por conseqüência na formação e treinamento, respectivamente. E, avançando em direção das concretudes, também pretendo manifestar a descrença, na possibilidade, considerando sua eficácia, de assumirmos conceitos ou convenções emanados de outros contextos culturais como parâmetros de eficiência organizacional, se as condições sociais são distintas ou sem reciprocidade mútua. Diria que é possível reiterar como constatação historicamente recorrente, as áreas periféricas procurarem se apropriar de emanações superestruturais das áreas centrais, como se isto fosse suficiente para transformações mais profundas. As condições dadas, geralmente, são insuficientes e inadequadas para a mímese.

Fala-se muito da segmentação do mercado turístico para as viagens. Ela viria a se propor como alternativa para o turismo de massas, os conhecidos pacotes fechados de custos reduzidos e vendidos a preços acessíveis. Por sua vez, foram eles, os pacotes, que permitiram a democratização das viagens ao exterior, o acesso da classe operária às viagens de férias, antes possíveis apenas para a burguesia. Onde? Certamente, na Europa, nos Estados Unidos, no Japão e em outros centros afluentes. Pacotes no Brasil? Um produto acessível apenas às classes médias dos grandes centros urbanos. Segmentação de mercado turístico? Uma distinção e uma aspiração que consagram a diferença social para o consumo, de subgrupos emergentes, em contraste interno naquelas mesmas camadas urbanas.

Ora, se esta é efetivamente a nossa realidade social, em que medida é possível que aqui as empresas turísticas incorporem motes organizacionais de outras paragens, dos centros hegemônicos e produtores da globalização? Não continuaríamos a querer importar aquelas emanações superestruturais, às quais já se fez referência, originárias de relações capitalistas mais avançadas? Afinal, que transformações são estas? Queremos mudar para que tudo permaneça a mesma coisa? E as empresas? Elas são motores de transformações sociais? Quais são as suas bases constitutivas? Ou seja, qual a característica dominante e a origem dos capitais de boa parte das empresas brasileiras?

Teria também, a preocupação de sugerir possibilidades para a superação da defasagem ou do hiato que ainda se coloca entre academia e empresa, de maneira a construir conhecimento, ou “capital intelectual” que se universalizem, ou seja, que pertençam a quem de direito, à sociedade. E cujos resultados se tornassem visíveis na formação de profissionais competentes, capazes de ações nas quais se manifestassem, dialeticamente articulados, conhecimento e prática.

De qualquer maneira, a intenção é apenas a de levantar problemas, produzir matéria para reflexão e debate, sem intenções de pontificar ou sugerir soluções messiânicas ou salvacionistas. Mesmo porque, para estas últimas é preciso ter fé, o que aponta para outro campo de conhecimento, dominado pela crença e a revelação.

Numa primeira instância é preciso decodificar o termo capital intelectual tal qual o entendo. Não me preocupa aqui, discutir o conceito ou a convenção manifesta em obras da área administrativa generalista, aplicáveis às empresas turísticas.

Penso que estamos diante de uma sugestão de paradigma para a integração interna de sistemas e, enquanto “repositórios inteligentes de dados” as referências recairiam sobre a elaboração de softwares. Referências adicionais nos remeteriam às novas tecnologias e, sobretudo, ao comércio eletrônico. Tudo isto pensado, portanto, no âmbito de empresas ou corporações. Em suma, o universo de circulação deste “capital intelectual”, por mais amplo que possa parecer, principalmente quando evocamos o comércio eletrônico e as corporações, é na verdade muito limitado: produtores, fornecedores e clientes. Ainda que globalizado, não é universal.

Quando pensamos universal, não deveríamos evocar o termo apenas para nos referirmos ao ocidente e oriente, ou norte e sul, por exemplo. O sentido de universal é mais complexo e abrangente, também é interno e local: refere-se ou deveria referir-se a todos os segmentos sociais de um determinado espaço e num determinado tempo dados. Sob este ponto de vista, a Universidade parece estar mais equipada para a produção de conhecimentos, na medida em que consideraria cabível discutir e conhecer tudo aquilo que se apresenta como problema para os homens no mundo seja qual for o segmento ou a subcategoria classificatória e social em que eles se encontrem. Sua clientela, ainda que fosse apenas de um estrato superior, não poderia pensar produzir conhecimentos só para os seus iguais. As ambições, ainda que a realização dos projetos não se concretize muitas vezes para a comunidade são universais, no sentido anteriormente definido. E, como decorrência, encontrar soluções ou meios de administrar os problemas que afligem todos os homens é tarefa da Universidade e dos seus membros. Numa palavra, uma tarefa cujo meio para realizá-la é a pesquisa, que produz conhecimentos. Seja qual for a sua natureza, institucional, aplicada e principalmente, básica.

Ao falarmos de pesquisas, dividindo-as nestas categorias, podemos evocar primeiramente o fato de uma empresa jamais se propor às pesquisas básicas. Elas dependem do fator tempo. Uma pesquisa desta natureza seja qual for a área do conhecimento, não pode ser executada em período inferior a dois anos, podendo estender-se até cinco anos. Além do mais, não é, na maioria das vezes, tarefa para um único indivíduo, mas para uma equipe. Pesquisas aplicadas podem ser menos dispendiosas e seus resultados são necessariamente datados, entretanto, as condições – excluída a duração ou fator tempo, sempre menor – se assemelham àquelas da pesquisa básica. Finalmente, as pesquisas institucionais, um elemento fundamental de auto-conhecimento para qualquer grande empresa, seja ela educacional ou não, geralmente naquelas cujo produto não é a educação são terceirizadas, isto é, não são executadas pelas empresas comerciais, ou turísticas, o foco das atenções presentes. As empresas, ao contrário das Universidades – que também podem ser empresas enquanto particulares – não executam pesquisas. Faço notar que as chamadas pesquisas de mercado trazem a marca de sondagens, isto é, denomina-se pesquisa enquanto termo traduzido indevidamente da língua inglesa que é bastante precisa neste sentido: research/survey, ou seja, pesquisa/sondagem ou, em francês: recherche/enquête. Aliás, este último termo já foi muito usado entre nós como sinônimo de sondagem. Existe uma dimensão de tempo, timing que envolve a pesquisa, disponível para a Universidade e impensável para a empresa. No primeiro caso, o trabalho intelectual requer um prazo de maturação incompatível diante das solicitações do cotidiano. Dentro da própria Universidade, as decisões administrativas exigem (ou exigiriam?) rapidez de respostas que nada tem a ver, embora a eles se articulem, com os aspectos intelectuais propriamente ditos. Estrutura e conjuntura se imbricam sem, no entanto, perder suas especificidades.

Ora, tudo isto nos leva à constatação de um uso equivocado de palavras que, ao deslizar do seu significado preciso e primeiro, podem nos conferir a impressão de uma empresa ser não apenas a responsável pelo treinamento, mas também pela educação e formação de seus funcionários. Se eu digo capital intelectual, pressuponho que a unidade a que me refiro é a responsável pela sua geração. E, ainda que uma empresa turística possa fazer sondagens ela jamais elabora a metodologia, apenas executa a sondagem. Ela, a empresa, se utiliza do conhecimento, ou seja, da base onde se assentam as possibilidades de articular diversas informações que são vitais para o seu funcionamento. Neste sentido, o conhecimento, entendido como epistemologia é o fundamento básico. Informações não têm a mesma dimensão de conhecimento. Seu valor só se dá através de uma trama de articulações que devem ser necessariamente válidas à luz da teoria do conhecimento, a base que lhes confere legitimidade.

Sob este ponto de vista, as empresas ou as próprias universidades, não possuem qualquer capital intelectual. Esclareço melhor, no caso das universidades, ainda que elas sejam responsáveis ou vetores deste capital, creio que são os indivíduos os portadores e dotados de capital intelectual. Universidades ou empresas agregam Capital Humano, designação clássica em Economia que preserva a dignidade dos indivíduos e distribui claramente competências: à família e à escola a formação e a educação; à empresa, o treinamento. A somatória disto tudo deve remeter-nos à sociedade. Fazer desaparecer o homem diante de uma corporação pode evocar trágicas experiências históricas de autoritarismo e totalitarismo. Da mesma maneira, os indivíduos não podem ser sacrificados à grande divindade cosmogônica do neoliberalismo e das suas metástases. Na verdade, todos estes pólos tornam o homem invisível e se apropriam da sua individualidade para um outro capital.

Por fim, a característica constitutiva ou os capitais a que me referi na introdução. Não sei se já houve qualquer sondagem neste sentido, no entanto, constato que, exceto as grandes corporações que atuam em hospedagem, a grande maioria daqueles que atuam em turismo constitui-se de empresas e capitais familiares. Essa peculiaridade traz à tona, como lemos com freqüência nos jornais, certas características que tornam incompatíveis a utilização de paradigmas administrativos originários do contexto anglo-saxão ou mais precisamente, norte-americano.

Caracterizadas por uma configuração patrimonial, e não burocrática. A empresa deste tipo é, quase sempre, originária de um fundador visionário, autoritário e paternalista que sobrevive dos seus defeitos – ajustados à cordialidade brasileira – e de suas qualidades, como empreendedor. Seus funcionários não são profissionais, são submissos e acomodados, sujeitos à afetividade e aos humores do patrão. Condição essencial: baixo nível de criatividade e submissão. O maior problema para a empresa é o processo sucessório do fundador e as rivalidades entre os herdeiros. A velha confusão, entre o patrimônio da empresa e o patrimônio pessoal, torna-se paroxística com a “rivalidade de ninhada”. O cotidiano da empresa torna-se oscilante e errático. É possível subsistir com este cenário utilizando paradigmas operacionais e organizacionais?

Claro que o quadro acima é fictício, mas apesar disto, escoimado de eventuais traços reducionistas, pode aproximar-se de situações reais. Apesar de sabermos também que nem todas as empresas familiares sofreriam estas injunções, o problema é nos perguntarmos como poderíamos falar de capital intelectual com este cenário hipotético? Os indivíduos que efetivamente o possuem não são submissos, são rebeldes. A criatividade não rima com passividade. O conhecimento desafia o senso comum. Para melhor ilustrar a situação basta imaginar-se um programa veiculado pela mídia, sobretudo da televisão. Estes programas jamais desafiam o telespectador, eles o confortam fazendo com que pense que se confirma tudo aquilo que ele “acha” sobre o mundo. O verdadeiro conhecimento pode investir contra as mais caras convicções do indivíduo, não o afaga, desconserta.

Finalizando, qual seria o capital das empresas turísticas? Em primeiro lugar conhecer suas próprias limitações: elas não geram conhecimentos, possuem informações que devem ser processadas por indivíduos bem formados, bem educados e, bem treinados. Nem as empresas poderão jamais se tornar entidades autárquicas, capazes de produzir conhecimentos, nem as universidades poderão através das simulações ideais dos laboratórios ter as experiências reais do cotidiano de trabalho. Capital intelectual? Terão apenas aqueles que conquistarem os homens para os seus fins. Ele é inalienável e pertence aos indivíduos enquanto seres sociais, ele é Capital Humano. Por outro lado é preciso que tenhamos um maior conhecimento do chão que pisamos: a adoção de paradigmas desenvolvidos em sociedades com alto grau de integração comunitária não são aplicáveis indiscriminadamente em outros contextos culturais. Se quisermos isto é preciso que tudo mude, efetivamente. Resta saber se vale à pena propormos mudanças seguindo os rumos da globalização, tal e qual está se delineando para nós. Ela funciona? Para quem?

Creio que há um vasto campo entre a Universidade e as Empresas Turísticas: é o da colaboração com o respectivo reconhecimento das competências e limitações. Em uma palavra: parceria. Nem a universidade pode encastelar-se numa torre de marfim, nem as empresas podem desqualificar os esforços de educação e pesquisa. Atuação solidária parece-me a alternativa, pois é preciso reconhecer o hiato que deve ser ultrapassado. Parceria, não filantropia ou mecenato. Há dezenas de alternativas como os convênios, que podem se traduzir em estágios, cursos de extensão, especialização, mestrados. E, sobretudo divulgar e difundir experiências e pesquisas que renovem para a sociedade a afluência e importância dos estudos em turismo.

Há uma grande esperança: os bacharéis que atuando no mercado também atuam na academia, sendo dotados da compreensão que ultrapassa a rotina cotidiana de trabalho, sejam os vetores de propostas integradoras. É deles o capital intelectual.
 
1 Doutor em História Social FFLCH/USP. Pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp – NEE/UNICAMP. Autor de Patrimônio Histórico Cultural. 3ª. Edição, Editora Aleph. Editor da Revista Eletrônica “Patrimônio: lazer & turismo” (www.unisantos.br/pos/tur. - ISSN: 1806-700X). Coordenador e Professor de Cidade e História: Patrimônio, Lazer e Turismo, curso de Pós-Graduação da UNISANTOS (Universidade Católica de Santos/SP).

2 O texto é a síntese de palestra proferida durante a realização do CBTUR 2002 em Foz do Iguaçu