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NOVEMBRO/2005: Os Bondes de Santos
Amílcar Ferrão Pinto 1
 
RESUMO: A chegada de dois bondes portugueses a Santos trazem, ao autor, lembranças da época em que esse meio de transporte fazia parte da paisagem urbana e promovia a sociabilização. Descrição sobre as propagandas contidas nos bondes e a destruição deles nas oficinas da SMTC, fazem parte do seu relato.

ABSTRACT: The arrival of two Portuguese streetcars brings to the author memories from the time when this kind of public transportation was part of the urban scene and Santos' social life. Descriptions about the
advertising campaigns on the streetcars and their destruction at SMTC garage are on his article.




Os jornais noticiaram recentemente a chegada de dois bondes portugueses. Irão trafegar na linha turística do centro da cidade.2

É inacreditável que tenhamos que trazer bondes do exterior. Santos possuía frota numerosíssima. Eram bondes únicos na sua forma: linhas retas, retangulares, pintados de verde, abertos. Representaram um dos traços mais característicos de nossa paisagem urbana. Contribuíram para a sociabilidade, a convivência, a humanização. Conversava-se no bonde; os santistas se reconheciam no caminho de casa, do trabalho, da escola ou do cinema.




Bonde especial para casamentos

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O bonde estava presente durante toda a vida das pessoas. Além de transporte regular dos passageiros, havia carros especiais para casamentos, festas, cargas, entregas de encomendas e até enterros. Praticamente todos os bairros eram atendidos. Havia um bonde “R”. Curiosamente jamais parava nos pontos. Apenas diminuía a velocidade e o passageiro precisava ter habilidade para subir e descer do veículo em movimento... Aprender a pegar bonde andando, como se dizia, era uma espécie de iniciação para a maturidade. O orgulho de saber subir e descer do bonde em velocidade, como os adultos, compensava joelhos e cotovelos ralados e, a surra ao chegar em casa.

(Começaram a circular em Santos no ano de 1864, com carris à tração animal, os “bondes de burro”). Em 1871, o serviço passa a ser explorado pela Companhia de Melhoramentos da Cidade de Santos, de propriedade de Domingos Moutinho, homem de muitas posses.




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O termo “bonde” que denomina esses veículos foi empregado pela primeira vez no Rio de Janeiro, na segunda metade do século XIX. Uma empresa francesa, para viabilizar economicamente o transporte coletivo à tração animal, emitiu títulos no mercado, bônus ou “bonds” em inglês, anunciando na imprensa, o que teria levado as pessoas a associar as duas coisas e passar a chamar os carros de bondes.

A tradicional Cia. City, The City of Santos Improvements Company, empresa já concessionária do fornecimento de eletricidade e gás, começou a operar o serviço de transporte coletivo em 1904, contando então com 18 bondes de passageiros e 9 de carga. Os bondes elétricos apareceram em 1909 , a partir de 1919, devido a dificuldades de importação decorrentes da I Grande Guerra e os altos custos, passaram as oficinas da Vila Matias a fabricar os bondes santistas. Foi a primeira fábrica de bondes do Brasil.




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Lembro meu avô português, motorneiro, que me garantia que indefectivelmente se acertavam os relógios com os bondes. O horário era cumprido com rigor e os cidadãos santistas, de terno e gravata, chapéu e polainas, puxavam da algibeira seus patacões e conferiam as horas diante da passagem dos bondes.

Dava-se toda a atenção ao usuário com publicação periódica, nos jornais da cidade, de informação completa sobre linhas, percursos, horários, número de veículos, tempo de espera nos pontos intermediários.

Tinham publicidade, então chamada de reclames, segundo o termo francês, na parte interna, na curvatura existente entre o teto e as laterais, em cima das cortinas de lona: pasta dentifrícia Odol, Vinho Reconstituinte Silva Araújo, brilhantina Glostora, elixir Dória, “Adão não se vestia porque Mahfuz não existia”, Emulsão de Scott (um óleo de fígado de bacalhau tido como fortificante milagroso que toda criança tomava fazendo caretas), aquela sextilha que os antigos gostam de dizer em cadência:




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“Veja, ilustre passageiro,
O belo tipo faceiro
Que o senhor tem a seu lado.
E, no entanto, acredite,
Quase morreu de bronquite!
Salvou-o o Rhum Creosotado!”.



Ninguém melhor narrou o que significaram os bondes para os santistas do que o saudoso escritor Nélson Salazar Marques. É de sua obra notável “Imagens de um Mundo Submerso”, de leitura obrigatória, este trecho:



“Muito santista deve lembrar-se ainda do bonde 1. Ele era também um bonde guerreiro, atrevido e furioso e à sua simples lembrança me vêm sensações excitantes. Tomar o bonde 1 à noite, fazer aquele trajeto pela Caneleira via Matadouro até São Vicente era aventura certa. Eu acredito que ele tivesse às vezes, em suas disparadas alucinantes, os próprios trilhos projetados acima do leito da avenida, à semelhança de via férrea, deixando correr as rodas desimpedidas, alcançar uns 70 quilômetros por hora. E não era raro verem-se aqueles bólidos metálicos, de cor verde, soltando chispas de fogo que saiam de suas rodas em atrito com os trilhos, chispas que se projetam dentro da noite, iluminando-a com uma fosforescência de chama azulada que parecia vir de outro mundo.”





Em 1915, foi constituída a empresa pública SMTC – Serviço Municipal de Transportes Coletivos, que assumiu o patrimônio da City e passou a operar o serviço. E a partir de 1956, “para melhor controle da receita”, os bondes começaram a ser construídos fechados, perdendo suas características originais. Três anos após, são retirados os bondes abertos menores, ficando somente os abertos grandes e os fechados.



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Deixam definitivamente de trafegar em 1971. A justificativa é de que eram lentos, atrapalhavam o trânsito, incompatíveis com a modernidade. O petróleo barato que induzia o transporte com veículos à diesel ou à gasolina, o crescimento da indústria automobilística, a rodovia dos Imigrantes aumentando o turismo, os carros particulares ocupando o espaço das ruas, o interesse dos empresários de ônibus, tudo foi mencionado como argumento para a desativação dos bondes. No dia 28 de fevereiro de 1971 circulou tristemente pela última vez o tradicional bonde de Santos. Foi o da linha 42, que fazia o percurso da Praça Mauá até a Ponta da Praia, ida e volta, via Avenida Ana Costa.

Depois, a falta de sensibilidade dos administradores completou a obra: os bondes foram destruídos a golpes de marreta e machado pelos próprios funcionários da SMTC, “cumprindo ordens superiores”. Todo o madeiramento virou lenha e queimou nas fornalhas. Os motores e metais foram para os ferros-velhos, o mesmo destino das centenas de elegantes postes de ferro fundido com românticos lampiões que um dia ornamentaram os nossos jardins da praia.


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1 Jornalista e Membro Efetivo da Academia Santista de Letras. Escreveu artigos sobre literatura e temas culturais na imprensa; e publicou os livros de poesia Outro Lugar, Outro Tempo, em 1988, Autocanto, em 1992, e Recolhimentos, em 2002.

2 Para maiores detalhes sobre o assunto, acesse a seção PAINEL. Novembro/2005: Outubro/2005: Setembro/2005: