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Arqueologia e Turismo: duas ferramentas para a construção, gestão e manutenção do patrimônio cultural
Gilson Rambelli 1
Paulo Fernando Bava de Camargo 2
Flávio Rizzi Calippo 3
 
O mito da aventura

A arqueologia, para a maior parte das pessoas, é sinônimo de aventura: ou ela é vista como uma pesquisa imperialista onde lords procuram construções fenomenais de civilizações perdidas, ou como uma aventura alucinante por locais exóticos cheios de perigos, mulheres estonteantes ou nativos vigorosos. Na arqueologia real há um pouco de aventura com a ruptura temporária da vida quotidiana, imposta pelo trabalho de campo. Se não fosse por isso, a vida do arqueólogo não seria diferente da de qualquer outro profissional liberal ou professor universitário.

A pesquisa de campo, que é o momento em que o arqueólogo encontra seu objeto de pesquisa in situ, representa uma porção bastante reduzida do tempo de trabalho dele. A maior parte das atividades consiste na preparação das etapas de campo, na análise do material coletado, em levantamentos bibliográficos, iconográficos e na lida com a burocracia.

Acreditamos que o turismo também seja uma disciplina cercada por uma série de imagens que refletem meias verdades. Dessa forma, surgem dois problemas básicos que afetam esses dois campos do conhecimento.

A arqueologia vai além da escavação

O primeiro refere-se à dificuldade da maioria dos não iniciados - e aí podem se encaixar até mesmo os profissionais de áreas correlatas - perceber que, tanto o turismo, quanto a arqueologia, fazem parte das ciências humanas porque têm como objeto de estudo o ser humano enquanto produtor social e que, portanto, são parentes próximas da economia ou da geografia, ciências há séculos reconhecidas como tais.

Em segundo lugar, a natureza exótica dessas duas disciplinas faz com que alguns meios de intervenção na realidade social, peculiares a cada uma delas, sejam tomados como as essências das mesmas, o que equivale dizer que a arqueologia é, pura e simplesmente, escavação e recuperação de objetos antigos - ou fragmentos dos mesmos - visando a musealização e que o turismo se resume à organização de pacotes turísticos e serviços de guia.

Na verdade, o turismo e a arqueologia são disciplinas bem mais complexas. Propositadamente eximir-nos-emos de elaborar uma definição mais detalhada do campo de interesse do turismólogo e iremos nos concentrar mais no do arqueólogo.

O que é a arqueologia e como ela pode interagir com o turismo?

A arqueologia, no decorrer da sua evolução teórico-metodológica, foi concebida de diversas maneiras. Num primeiro momento ela foi considerada uma ciência auxiliar da história: sua função era a de comprovar as idéias dos historiadores, de ser mais um dado a ser incorporado à lógica da pesquisa histórica.

Foi só mais recentemente, em fins da década de 1960, que a arqueologia passou a ser encarada como uma ciência com seu próprio modo de tratar a realidade. A Arqueologia Processual - também chamada de Nova Arqueologia, porque propunha novos paradigmas frente aos da Arqueologia Histórico-Cultural - desatrelou a arqueologia dos ditames de outras ciências e a propôs como uma ciência que produziria interpretações da realidade diferentes de todas as outras, a partir dos restos da cultura material.

Hoje, existem várias vertentes arqueológicas, todas elas frutos dos acúmulos desiguais das teorias passadas. Não podemos dizer que elas foram descartadas e superadas por outras, mas, a seu modo, cada uma contribuiu para a formação do conhecimento arqueológico moderno.

Apesar dessas diversas correntes contemporâneas terem suas individualidades, elas podem ser englobadas dentro do que se convencionou chamar de Arqueologia Pós-Processual.

Umas das correntes pertencentes ao universo pós-processual, ou muito próximas a ele são as que se embasam no materialismo histórico, popularmente difundido como marxismo. Note-se bem que não estamos tratando das idéias que alicerçaram os governos totalitários de esquerda.

Nessa vertente do pensamento arqueológico, o motor da pesquisa é o desejo de esclarecimento dos problemas de hoje e a procura de fórmulas novas para combatê-los. A cultura material passada, evidenciada pelo arqueólogo, serviria para transformar as lembranças isoladas e desconexas de pessoas (reminiscências do fato vivido) em memória coletiva, provocando uma re-elaboração da reminiscência pessoal através da trama da história coletiva, formando sujeitos que percebem seu papel histórico no presente.

Ou seja: temos coisas enterradas - ou restos de coisas - saídas de escavações ou não que, dependendo da interpretação do arqueólogo, respondem perguntas de como eram as sociedades e culturas das quais faziam parte as pessoas que utilizaram aquelas coisas - ou restos de coisas - que estavam enterradas.

O grande problema da difusão do conhecimento derivado das pesquisas arqueológicas é a forma como ele pode ser apresentado ao grande público. As disciplinas de arqueologia dos cursos de graduação e de pós-graduação são os meios consagrados de divulgação, mas são extremamente específicas e atingem a um público restrito.

Os documentários dos canais especializados dos canais de televisão por assinatura são hoje importantes disseminadores do conhecimento arqueológico mas, apesar de atingirem um maior número de pessoas, ainda assim são poucos os telespectadores que podem ter canais por assinatura no país. Além disso, freqüentemente os temas retratam Egito, Grécia e Roma, realidades distantes do público brasileiro. E, finalmente, as possibilidades de interação entre o público e o material que está sendo veiculado pela televisão são bastante pequenas.

A partir dessa problemática surge o turismo como um meio bastante eficaz para a divulgação da arqueologia. Como fazer isso? Fazendo a transposição do conhecimento arqueológico para o universo do turismo.

Para tanto, é necessário que o turismólogo seja capaz de compreender os princípios básicos da arqueologia para incorporar o conhecimento arqueológico nas atividades turísticas, criando um novo programa dentro do turismo patrimonial, ordinariamente conhecido como turismo cultural.

Retomando a linha de arqueologia materialista histórica, o turismo seria o vetor de transformação da idéia que uma sociedade tem sobre seu passado. Ao invés desse conhecimento transformador ser difundido apenas nas salas de aula, as atividades turísticas propiciariam a conscientização de um passado mais rico e diferente do que é perpetrado pela historiografia oficial, para um maior número de pessoas.

Ao fim e ao cabo, perceberemos que essa mudança de mentalidade não vem de uma fórmula mágica, tampouco de alguma atração exótica recém incorporada aos roteiros internacionais: ela provém do simples fato de pensarmos sobre nós mesmos, sobre nossa condição sócio-cultural e do entendimento da arqueologia como uma ciência que é feita por pesquisadores para pesquisadores e também para pessoas comuns.

Isso é o que pretende a disciplina Patrimônio cultural, lazer e turismo: uma abordagem arqueológica, integrante do curso de pós-graduação Cidade, história, meio ambiente, turismo e lazer. Dentro da perspectiva de proporcionar embasamento arqueológico para os turismólogos, teremos a Baixada Santista como um grande campo de provas, onde o patrimônio arqueológico, enterrado ou depositado em superfície, no topo dos morros ou no fundo do mar será enxergado como o grande vetor de transformação do turismo patrimonial.

 
1Doutor e Mestre em Arqueologia pelo Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo, MAE-USP. Graduou-se em História pela mesma universidade. Membro da Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB), do International Comittee on Underwater Cultural Heritage, ICUCH (UNESCO), professor da Nautical Archaeology Society (NAS - UK) e diretor do Centro de Estudos de Arqueologia Náutica e Subaquática (CEANS) do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Estadual de Campinas (NEE - UNICAMP).
2Mestre em Arqueologia pelo MAE-USP. Graduou-se em Ciências Sociais pela mesma universidade. Membro da SAB, da Society for Historical Archaeology (SHA), EUA, professor assistente da NAS - UK e pesquisador do Centro de Estudos de Arqueologia Náutica e Subaquática (CEANS) do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Estadual de Campinas (NEE – UNICAMP).
3Aluno de mestrado em Arqueologia pelo MAE-USP. Graduou-se em Oceanografia pela Fundação Universidade do Rio Grande, FURG. É professor assistente da NAS - UK e pesquisador do Centro de Estudos de Arqueologia Náutica e Subaquática (CEANS) do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade Estadual de Campinas (NEE - UNICAMP).
 
 
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