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Lazer, Patrimônio e Turismo: algumas considerações
Pedro Paulo A. Funari1
 
Resumo
O artigo inicia-se com uma discussão dos significados associados a patrimônio e sua importância social. Trata-se, em seguida, do turismo em sua relação com os bens culturais como fonte tanto de lazer, como de conhecimento.

Abstract
The paper starts by discussing the meanings associated to heritage and its social importance. Tourism is then dealt with in its relationship with cultural heritage as source of both leisure and knowledge.

Lazer, patrimônio e turismo nem sempre andam juntos. Por que isso acontece e como unir prazer e conhecimento em uma atividade econômica produtiva? Quando organizamos o volume Turismo Cultural (São Paulo, Editora Contexto, 2004, 3a. Ed.), com Jaime Pinsky, já notávamos que o tema suscitava grande interesse e que a literatura nacional a respeito, crescente, estava restrita a revistas científicas e a alguns compêndios. Antes de discutir essa problemática, contudo, cabe explorar os diferentes sentidos ligados ao conceito mesmo de “patrimônio cultural”. As línguas românicas usam termos derivados do latim patrimonium para se referir à “propriedade herdada do pai ou dos antepassados, uma herança”. Os alemães usam Denkmalpflege, “o cuidado dos monumentos, daquilo que nos faz pensar”, enquanto o inglês adotou heritage, na origem restrito “àquilo que foi ou pode ser herdado” mas que, pelo mesmo processo de generalização que afetou as línguas românicas e seu uso dos derivados de patrimonium, também passou a ser usado como uma referência aos monumentos herdados das gerações anteriores. Em todas estas expressões, há sempre uma referência à lembrança, moneo (em latim, “levar a pensar”, presente tanto em patrimonium como em monumentum), Denkmal (em alemão, denken significa “pensar’) e aos antepassados, implícitos na “herança”. Ao lado destes termos subjetivos e afetivos, que ligam as pessoas aos seus reais ou supostos precursores, há, também, uma definição mais econômica e jurídica, “propriedade cultural”, comum nas línguas românicas (cf. em italiano, beni culturali), o que implica um liame menos pessoal entre o monumento e a sociedade, de tal forma que pode ser considerada uma “propriedade”.

Os monumentos históricos e os restos arqueológicos são importantes portadores de mensagens e, por sua própria natureza como cultura material, são usados pelos atores sociais para produzir significado, em especial ao materializar conceitos como identidade nacional e diferença étnica. Deveríamos, entretanto, procurar encarar estes artefatos como socialmente construídos e contestados, em termos culturais, antes que como portadores de significados inerentes e não-históricos, inspiradores, pois, de reflexões, mais do que de admiração. Uma abordagem antropológica do próprio patrimônio cultural ajuda a desmascarar a manipulação do passado. A experiência brasileira, a esse respeito, é muito clara: a manipulação oficial do passado, incluindo-se o gerenciamento do patrimônio, é, de forma constante, reinterpretada pelo povo.

A preservação dos edifícios de igrejas coloniais poderia ser considerada, no Brasil e no resto da América Latina, como o mais antigo manejo patrimonial. É interessante notar que a importância da Igreja Católica na colonização ibérica do Novo Mundo explica a escolha estratégica de se preservar esses edifícios, sejam templos construídos sobre os restos de estruturas indígenas, sejam as igrejas nas colinas que dominavam a paisagem, como foi o caso na América portuguesa. Contudo, nem mesmo as igrejas foram bem preservadas no Brasil, com importantes exceções, e isto pode ser explicado pelo anseio das elites, nos últimos cem anos, de “progresso”, não por acaso um dos dois termos na bandeira nacional surgida da Proclamação da República, em 1889, “ordem e progresso”. Desde então, o país tem buscado a modernidade e qualquer edifício moderno é considerado melhor do que um antigo. Houve muitas razões para mudar-se a capital do Rio de Janeiro para uma cidade criada ex nouo, Brasília, em 1961, mas, quaisquer que tenham sido os motivos econômicos, sociais ou geopolíticos, a mudança apenas foi possível porque havia um estado d’alma favorável à modernidade. A melhor imagem da sociedade brasileira não deveria ser os edifícios históricos do Rio de Janeiro, mas uma cidade moderníssima e mesmo os mais humildes sertanejos deveriam preterir seu patrimônio, em benefício de uma cidade sem passado. Mesmo em cidades coloniais, algumas delas bem conhecidas no exterior, como Ouro Preto, declarada Patrimônio da Humanidade, a modernidade está sempre presente, por desejo de seus habitantes. Guiomar de Grammont (1998: 3) descreve esta situação com palavras fortes:

“A distância entre as autoridades e o povo é a mesma daquela entre a sociedade civil e o passado, devido à falta de informação, ainda que os habitantes das cidades coloniais dependam do turismo para sua própria sobrevivência. Quem são os maiores inimigos da preservação dessas cidades coloniais? Em primeiro lugar, a própria administração municipal, não afetada pelos problemas sociais e ignorante das questões culturais em geral mas, às vezes, os moradores também, inconscientes da importância dos monumentos, contribuem para a deformação do quadro urbano. Novas janelas, antenas parabólicas, garagens, telhados e casas inteiras bastam para transformar uma cidade colonial em uma cidade moderna, uma mera sombra de uma antiga cidade colonial, como é o caso de tantas delas”.

É fácil entender que as pessoas estejam interessadas em ter acesso à infraestrutura moderna mas, como notam os europeus quando visitam as cidades coloniais, se os edifícios medievais podem ser completamente re-aparelhados, sem danificar os prédios, não haveria porque não fazê-lo no Brasil. Outra ameaça ao patrimônio arqueológico das cidades coloniais é o roubo, já que os ladrões são muito atuantes, havendo mais de quinhentas igrejas e museus locais coloniais. Um problema mais prosaico é a deterioração dos monumentos devido à falta de manutenção e abrigo, mesmo no interior de edifícios. Estes três perigos para a manutenção dos bens culturais, aparentemente não relacionados, revelam uma causa subjacente comum: a alienação da população, o divórcio entre o povo e as autoridades, a distância que separa as preocupações corriqueiras e o ethos e políticas oficiais.

Para o povo, há, pois, um sentimento de alienação, como se sua própria cultura não fosse, de modo algum, relevante ou digna de atenção. Tradicionalmente, havia dois tipos de casa no Brasil: as moradas de dois ou mais andares, chamados de “sobrados”, onde vivia a elite, e todas as outras formas de habitação, como as “casas” e “casebres”, “mocambos” (derivado do quimbundo, mukambu, “fileira”), “senzalas” (locais da escravaria), “favelas” (tugúrios). O resultado de uma sociedade baseada na escravidão, desde o início houve sempre dois grupos de pessoas no país, os poderosos, com sua cultura material esplendorosa, cuja memória e monumentos são dignos de reverência e preservação e os vestígios esquálidos dos subalternos, dignos de desdém e desprezo. Segundo a visão tradicional, a catedral, freqüentada pela “gente de bem”, deve ser preservada, enquanto a Igreja de São Benedito, dos “pretos da terra”, não é protegida e é, com freqüência, abandonada. Neste contexto, não é de surpreender que o povo não dê muita atenção à proteção cultural, sentida como se fora estrangeira, não relacionada à sua realidade. A mesma distância afeta o patrimônio, pois os edifícios coloniais são considerados como “problema deles, não nosso”. Poderíamos dizer, assim, que a busca da modernidade, mesmo sem levar em conta a destruição dos bens culturais, poderia bem ser interpretada como um tipo de luta não apenas por melhores condições de vida, mas contra a própria lembrança do sofrimento secular dos subalternos.

O patrimônio arqueológico stricto sensu poderia deixar de ser afetado por esta falta de interesse na preservação da cultura material da elite, na medida em que a Arqueologia produz evidência de indígenas e dos humildes em geral. Entretanto, há muitos fatores que inibem um engajamento ativo da gente comum na proteção patrimonial. Em primeiro lugar, há falta de informação e de educação formal sobre o tema. Indígenas, africanos e pobres são raramente mencionados nas lições de História e, na maioria das vezes, as poucas referências são negativas, ao serem representados como preguiçosos, uma massa de servos atrasados incapazes de alcançar a civilização. Os índios eram considerados ferozes inimigos, dominados por séculos e isso de pleno direito.

No Brasil, o cuidado do patrimônio sempre esteve a cargo da elite, cujas prioridades têm sido tanto míopes como ineficazes. Edifícios de alto estilo arquitetônico, protegidos por lei, são deixados nas mãos do mercado e o comércio ilegal de obras de arte é amplamente tolerado. A gente comum sente-se alienada tanto em relação ao patrimônio erudito quanto aos humildes vestígios arqueológicos, já que são ensinados a desprezar índios, negros, mestiços, pobres; em outras palavras, a si próprios e a seus antepassados. Neste contexto, a tarefa acadêmica a confrontar os estudiosos e aqueles encarregados do patrimônio, no Brasil, é particularmente complexa e contraditória. Devemos lutar para preservar tanto o patrimônio erudito como popular, a fim de democratizar a informação e a educação, em geral. Acima de tudo, devemos lutar para que o povo assuma seu destino, para que tenha acesso ao conhecimento, para que possamos trabalhar, como acadêmicos e como cidadãos, com o povo e em seu interesse. Como cientistas, em primeiro lugar, deveríamos buscar o conhecimento crítico sobre nosso patrimônio comum. E isto não é uma tarefa fácil e que se relaciona, de forma menos distante do que se poderia imaginar, com o Turismo, pois o lazer turístico, centrado numa das mais importantes indústrias da economia mundial, permite integrar pessoas de diferentes origens e pontos de vista, que se enriquecem, culturalmente, pela interação. O Turismo constitui parte de um esforço universal pela preservação da diversidade natural e cultural, tal como propugnada pela UNESCO, face à globalização que tende a tudo uniformizar.

O Turismo, considerado como o deslocamento de pessoas de seu domicílio quotidiano, por no mínimo 24 horas, com a finalidade de retorno, segundo definição da OMT (Organização Mundial de Turismo), pode desempenhar papel importante na preservação da diversidade natural e cultural da Humanidade. Mas, por que as pessoas se deslocam, aos milhões? Em princípio as pessoas só decidem viajar se e quando querem entrar em contato com outros costumes e maneiras de viver, com outros povos e culturas, com outras realidades, ávidas, à sua maneira, pelo contato com o diferente, pela diversidade cultural.

Pode dizer-se, deste ponto de vista, que todo turismo é busca pela diversidade natural e cultural. O turismo de lazer cultural está presente quando da apropriação de algo que possa ser caracterizado como bem cultural, seja o que for. Uma caminhada demorada pelo Quartier Latin, em Paris, pode ser culturalmente mais expressiva que uma visita, sem interesse, ao Museu do Louvre, da mesma forma que um simples “quilo” de comida mineira em Ouro Preto, no convívio com os locais, pode ser mais enriquecedor que uma refeição com outros turistas.

Poderíamos mesmo dizer que patrimônio cultural é tudo aquilo que constitui um bem apropriado pelo homem, com suas características únicas e particulares. Enquanto um sanduíche do MacDonald’s, típico produto global e globalizado, busca ser rigorosamente igual em todo o mundo, dos ingredientes básicos ao tempero, da forma de servir aos acompanhamentos, um mesmo peixe pode ser preparado, à sua maneira, por cada cozinheiro: embrulhado em folhas de banana, no litoral paulista; com leite de coco e azeite de dendê no litoral baiano; cozido lentamente em panelas de barro nas moquecas capixabas; como filé, na manteiga, acompanhado de molho de alcaparras em restaurantes elegantes e simplesmente frito a doré, na beira da praia. Tanto o hambúrguer do Mac quanto o peixe podem ser vistos como bens culturais. Porém, enquanto o sanduíche do Mac representa um bem cultural global, padronizado, que passa a idéia de que as pessoas viajam, mas não saem do lugar, o pescado é uma iguaria local e é esta particularidade que muitos de nós buscam quando vão viajar (ainda que possamos, também, refugiarmo-nos no sanduíche, quando cansamos da imersão na cultura local).

Às vezes, a solenidade atribuída ao termo patrimônio sugere que dele façam parte apenas os grandes edifícios ou as grandes obras de arte, mas o patrimônio cultural abrange tudo que constitui parte do engenho humano e, por isso, como vimos no início deste artigo, pode estar no cerne mesmo do turismo. Dessa forma, podemos e devemos ampliar muito nossa compreensão do conceito, com todas as implicações decorrentes, das epistemológicas às práticas. O envolvimento da população local na própria gestão dos bens culturais constitui, assim, aspecto essencial para que o turismo seja não apenas fonte de recursos econômicos, como de satisfação cultural para a própria população local. As viagens permitem não apenas conhecer outras realidades, mas perceber e valorizar a grande e rica diversidade cultural brasileira. A cidadania só se constrói com o reconhecimento e respeito pelas muitas formas de se viver e de se pensar o mundo. Patrimônio, lazer e turismo nem sempre parecem termos que se encontram relacionados em nossa realidade. Poucos associam museus a lazer e menos ainda convém-se associar espaços como shoppings ou resorts a patrimônio, mas teríamos muito a aprender com os grande países turísticos, cujos atrativos são, antes de tudo, a diversidade cultural. Nossos descendentes agradecerão, também, se nos preocuparmos com isso hoje.
 
1Departamento de História, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Estadual de Campinas, C. Postal 6100, Campinas, 13081-970, SP, Brasil, fax 55 19 289 33 27, ppfunari@uol.com.br; Coordenador-Associado do Núcleo de Estudos Estratégicos da UNICAMP.