Exploração do Gás da Bacia de Santos e Sustentabilidade - Novos Relacionamentos Empresa/Movimento Ambientalista


Resumo


O capítulo aproveita resultados de pesquisa sobre conflitos socioambientais no Litoral Norte paulista, onde se localizam as atividades do Projeto Mexilhão de extração de gás da Bacia de Santos. O projeto teve sua implantação iniciada ao mesmo tempo em que outras grandes intervenções foram anunciadas para a região, gerando inquietação entre segmentos da sociedade regional, com destaque para os movimentos ambientalistas, cujas reações se acirraram em função da condução inábil das audiências públicas por parte do órgão licenciador.


As reivindicações trazidas pelos ambientalistas são cotejadas, no trabalho, com alternativas de ação à disposição da Petrobras, conforme esta empresa se atenha ao que for normatizado no processo de licenciamento ou decida adotar iniciativas voluntárias mais amplas. A discussão explora possíveis vantagens que podem se abrir para a empresa em seu relacionamento com o público, com a adoção de iniciativas que a posicionem, no contexto regional, no campo dos atores pró Sustentabilidade.


Introdução: empresa, gerenciamento de conflitos socioambientais e sustentabilidade


Este trabalho tem o objetivo de analisar os conflitos socioambientais que cercam as operações com petróleo e gás no Litoral Norte de São Paulo, região onde se localizam as principais atividades do Projeto Mexilhão de aproveitamento do gás da Bacia de Santos. Esse panorama de conflitos envolve mais diretamente as iniciativas de produção e de gestão ambiental da Petrobras, os procedimentos das agências ambientais governamentais, em especial o Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis - IBAMA, e os comportamentos do movimento ambientalista da região.


Os fenômenos de conflito já manifestados revelam inicialmente contradições entre os ambientalistas e a empresa. Contudo, uma análise mais acurada indica que as limitações da política ambiental governamental podem incidir em vetores de acirramento dos conflitos, cuja compreensão mais ampla deve levar em conta uma leitura sobre os aspectos gerais da dinâmica territorial nesta porção da costa brasileira.


Este exame em maior profundidade permite descortinar alternativas de estratégias socioambientais desde o ponto de vista da empresa, uma vez que sua política de gestão se dirija na perspectiva da Sustentabilidade, abrindo possibilidades de mudança de posicionamento e para tanto explorando diferenças entre resultados do estrito cumprimento da lei e possíveis ganhos com iniciativas voluntárias de diálogo.


Basicamente, o Projeto Mexilhão consiste na extração de gás a cerca de 150 quilômetros da costa, defronte a Ilhabela, com a implantação de gasoduto submarino que chega ao continente no município de Caraguatatuba, onde se estabelecerá uma estação de tratamento; e na construção de outra linha de duto que, por um túnel, subirá a Serra do Mar, ligando-se no planalto, em Taubaté, ao gasoduto Campinas – Rio de Janeiro. Da estação de tratamento, uma linha levará “condensado” ou gasolina natural para São Sebastião, projetando-se para tanto outra obra de túnel. Importante ressaltar que a opção por túneis nos trechos com vegetação de mata atlântica representa uma incorporação de valor ambiental à concepção da obra.


O começo do projeto somou-se ao anúncio de outras intervenções de porte na região: expansão do Porto de São Sebastião, ampliação da Rodovia dos Tamoios, construção de um CDP (Centro de Detenção Provisória) em Caraguatatuba. Diversos setores da sociedade regional, com destaque para as entidades ambientalistas, posicionaram-se publicamente pela realização de uma avaliação ambiental estratégica, integrando as visões sobre as conseqüências de todas estas intervenções na dinâmica territorial.


Posteriormente, no final de 2006, a primeira audiência pública do processo de licenciamento do Projeto Mexilhão viria deflagrar uma reação mais forte em relação a esse projeto, em função das falhas de condução do processo de debate público naquela ocasião, o que será melhor examinado mais adiante.


Este artigo foca o caso do Projeto Mexilhão, como parte do relacionamento da Petrobras com os públicos regionais, para exercitar uma discussão sobre possibilidades de gerenciamento dos conflitos como uma via para construir estratégias de sustentabilidade.


Ferramentas conceituais utilizadas nesse trabalho


Conflitos socioambientais são disputas entre diferentes grupos humanos que utilizam de formas distintas os recursos ambientais. São fenômenos complexos, envolvendo a esfera dos fenômenos físicos e biológicos, as relações sociais, e a interação entre estes dois campos. São mais freqüentes os conflitos decorrentes dos impactos ambientais de uns usos sobre outros, as disputas pela utilização de recursos, e os conflitos pelo uso dos conhecimentos ambientais (Little, 2001).


No Brasil, a dinâmica de conflitos ambientais é um fenômeno essencial para entender a evolução da política ambiental. Por parte dos movimentos de opinião ambientalistas, um dado fundamental é que na fase de fundação (anos 70-80) houve uma forte influência de uma visão de mundo preservacionista, dentro do ideal de manutenção de uma natureza intocada, cuja transformação pelos seres humanos é vista como algo negativo. Pelo lado do governo, assinale-se uma dificuldade em incorporar a resolução de conflitos como dimensão estratégica da política ambiental, já que predomina uma cultura burocrática, normativa, herdada da fase de controle dos efeitos negativos das práticas econômicas e que não avançou para uma visão gerencial mais ampla, à altura do desafio de construir um desenvolvimento sustentável (Leis, 1999; Leis e Viola, 1996).


Sustentabilidade ou Desenvolvimento Sustentável é um conceito consagrado pelo Relatório Nosso Futuro Comum, que traz a idéia de superar o cenário que indica um colapso das possibilidades de desenvolvimento em função da ultrapassagem dos limites da natureza em sua capacidade de sustentar a economia. A Sustentabilidade tem como dimensões fundamentais o atendimento das necessidades básicas das populações atuais e futuras, revendo padrões de consumo acima do ecologicamente razoável; o uso prudente dos recursos naturais, desenvolvendo substitutos para os recursos não renováveis antes de seu esgotamento e respeitando padrões que permitam a perpetuação da oferta dos recursos renováveis; uma revisão da técnica, evitando a poluição e os riscos; a conservação da diversidade biológica e a renovação dos processos ecológicos essenciais; a construção e manutenção de uma relação equilibrada entre volume das populações e as bases de recursos dos ambientes em cada região (CMMAD, 1988; Sachs, 1993).


Recursos comuns são conjuntos que ofertam serviços ambientais que dependem de sua indivisibilidade, como mares produtores de pescado, florestas produtoras de água, etc. Nossa sociedade tem dificuldade cultural e jurídica em administrar estes recursos, em relação aos quais seria interessante aprender com os exemplos de grupos de populações tradicionais, cujas culturas encerram regimes de propriedade compartilhada, geradores de normas de uso que prescrevem o respeito a parâmetros equilibrados de aproveitamento para evitar quadros de escassez (MacKean e Ostrom, 2001).


Abordagem dos ganhos mútuos para resolução de disputas é um conjunto de propostas de estratégias que facilitam a construção de entendimentos em situações de conflito envolvendo muitos atores, como são tipicamente os conflitos socioambientais. Esta abordagem é trabalhada pelo Consensus Building Institute, centro de pesquisa que reúne trabalhos do M.I.T. e Escola de Direito de Harvard, e divulgada por meio do International Programme on the Management of Sustainability (Susskind & Field, 1997; Susskind et al., 2000). Propõe a superação de jogos de soma zero (em que um lado ganha e outro perde) por novas estratégias baseadas no reconhecimento dos interesses das outras partes para que seja possível construir combinações positivas com os próprios objetivos, em cada situação de conflito.


A exploração dos interesses e objetivos dos diferentes atores serve de base para desenhar a melhor alternativa que cada um pode esperar para um acordo negociado. Aí estão os subsídios para o reconhecimento de uma zona de possíveis acordos, um campo em torno do qual pode-se buscar construir cooperação (Susskind et al., 2000).


Empresa, conflito e construção de reputação ambiental: para autores como Fernando Almeida, a empresa deve negociar os conflitos com os grupos de interesse com os quais se relaciona – consumidores, fornecedores, governo, comunidades, imprensa, ambientalistas, etc. - pois hoje no Brasil há um processo participativo na política ambiental fazendo com que as decisões sobre licenças ambientais extrapolem o pessoal técnico dos órgãos de governo. A reputação ambiental torna-se um ativo intangível da empresa, a ser obtido por meio de uma combinação de responsabilidade social, ecoeficiência e diálogo com os stakeholders (grupos de interesse). É cada vez mais um valor positivo que se pode agregar aos negócios (Almeida, 2002 e 2007; Barbieri, 2004).


Risco, gerenciamento dos riscos, risco ambiental do negócio, gestão social do risco


Os riscos de acidentes ambientais são elementos centrais para a atividade de petróleo e gás, cujo gerenciamento se apóia na equação básica R=FxC (risco é igual à multiplicação da freqüência ou probabilidade de eventos acidentais, por suas conseqüências).


Podem ocorrer situações em que não bastam as medidas técnicas a cargo das equipes da empresa que opera com produtos perigosos. Quando cenários de acidentes podem incluir desdobramentos externos, afetando diretamente comunidades, a redução de conseqüências implica na preparação destes grupos, dos governos locais, dos órgãos de emergência, para respostas adequadas.


Para a empresa que tem na sua estratégia a construção da boa reputação ambiental, o risco passa a ter uma equação ampliada, em que todos os fatores acima são multiplicados pela repercussão de um possível acidente na opinião pública, o que pode ser entendido como um risco ambiental para o negócio (Cunha e Junqueira, 2007).


De outro lado, na medida em que a segurança ambiental depende em determinadas situações da cooperação do governo local, dos órgãos de emergência e das lideranças da comunidade para que exista um padrão aceitável, o gerenciamento de riscos torna-se uma tarefa social que demanda, entre outros fatores, capacitação ampliada, ou seja, iniciativas destinadas a formar interlocutores aptos a participar da gestão (Cunha e Junqueira, 2007).


Síntese: posicionamento estratégico socioambiental – como a atividade econômica estreita ou amplia as oportunidades associadas à resiliência ecológica; como proporciona uma gestão social do risco ambiental.


Combinando os conceitos acima referenciados, a discussão do posicionamento da empresa diante de situação de conflito ambiental parte do entendimento de que os vários atores enxergam a empresa não apenas em função da maneira como consegue fazer a gestão ambiental dos seus próprios processos produtivos, mas também pelo condicionamento que impõe sobre os recursos de uso comum, consumindo uma faixa de sua resiliência ecológica e dessa forma eventualmente estreitando as oportunidades de sobrevivência dos demais setores.


Mais que isso: há um jogo de forças no quadro de conflito ambiental em cada região, e a empresa é avaliada pelos diferentes atores em função da articulação que mantém com os demais interesses, contribuindo para que exista um determinado padrão de uso dos recursos, de dinâmica territorial, de poluição, desmatamento, etc.


A empresa passa a ser vista como parte de uma coalizão de poder que impõe um padrão de uso predatório dos recursos ambientais, no País e numa dada região; e para alterar sua reputação, deve buscar ser reconhecida como um dos atores pró Sustentabilidade.


Metodologia


A análise aqui apresentada aproveita resultados de pesquisas desenvolvidas em diferentes momentos sobre os procedimentos de gestão ambiental na região do litoral norte paulista, especialmente aqueles referentes ao gerenciamento de riscos do terminal de São Sebastião. O trabalho se apóia ainda em estudo documental complementar, especialmente o Zoneamento Ecológico Econômico do Litoral Norte, e os Relatórios de Impacto Ambiental sobre o Projeto Mexilhão; e também em levantamento sobre pontos de vista de atores relevantes na região, por meio de entrevistas com dirigentes de Unidades de Conservação, de órgãos ambientais municipais, representantes de organizações do setor de comércio, militantes ambientalistas e de entidades de desenvolvimento da cidadania, bem como especialistas do ramo do turismo; e de discussões em grupo, no interior do Conselho Consultivo do Núcleo São Sebastião do Parque Estadual da Serra do Mar, bem como com integrantes da Rede de Entidades Ambientalistas do Litoral Norte - REALNorte.


Com base no levantamento realizado, foi construída uma representação esquemática apresentando de um lado as ações típicas do processo de licenciamento ambiental, seguindo normas e decisões técnicas dos órgãos ambientais; e de outro, ações voluntárias definidas com base no diálogo entre a empresa. Para ambas as alternativas, são explorados os desdobramentos no campo dos relacionamentos entre empresa e diferentes segmentos do público interessado.


Panorama de conflitos ambientais no Litoral Norte de São Paulo


A região tem diversos condicionantes ambientais peculiares, com destaque para a Mata Atlântica na Serra do Mar e os ambientes costeiros marinhos e terrestres, acompanhados da presença de uma variedade de atores com forte potencial de articulação e repercussão para suas visões críticas, para fora da região, sejam estas posições avançadas tecnicamente ou não.


Registra-se aí uma história de conflitos ambientais acirrados, associados ao fato da região ter guardado relativo isolamento até os anos 80, quando se deu a melhoria do acesso rodoviário. Na história da mudança regional, alguns grandes empreendimentos – como o Porto de cargas gerais ou o Terminal de petróleo e derivados, ambos em São Sebastião – se somam a um processo de ocupação desordenada que está ainda em curso, um processo imobiliário incontido que se desdobra no dia a dia da política local como choque de diferentes concepções de mundo (Cunha, 1996).


As ações de administração ambiental governamental na região estão aquém do padrão requerido para gerir os conflitos e estabelecer um processo ordenado de dinâmica territorial, uma gestão que inclusive possa canalizar produtivamente o encaminhamento de reivindicações e propostas oriundas dos diferentes setores organizados. Há limitações nos trabalhos de fiscalização ambiental, especialmente carências em relação ao controle da ocupação de áreas por novos loteamentos clandestinos.


A Petrobras tem uma intervenção de grande porte na região, que historicamente teve sua parcela de contribuição para este processo de ocupação. Suas operações com produtos perigosos se desenvolvem no interior de conjuntos naturais e construídos de alta vulnerabilidade e importância ecológica e cultural. Há um stress no relacionamento cotidiano da empresa com diferentes segmentos da sociedade local, ligado entre outros fatores à memória de acidentes e contaminações, e à falta de uma continuidade/coerência nas manifestações externas da empresa (atitudes dos seus diferentes setores, como a área de meio ambiente, a área de engenharia, etc.).


Desde os grandes acidentes da Baía de Guanabara e de Araucária, a Petrobras vem implantando novos procedimentos de gestão ambiental avançada. Contudo, a velocidade da mudança de cultura técnica da empresa em gestão ambiental é bem maior do que o ritmo de mudança da percepção e de aquisição de confiança nessa transformação da empresa, por parte dos diferentes públicos externos. Os mecanismos participativos de gerenciamento ambiental já construídos na região, que poderiam auxiliar nessa direção, sofrem com a descontinuidade por parte dos governos locais.


O retorno econômico da presença da empresa, segundo indicam os depoimentos recolhidos, não garante um reconhecimento de seu papel positivo para o desenvolvimento local. A principal razão é o padrão usual de administração pública, a utilização com prioridades discutíveis e nada transparentes do orçamento governamental para o qual a arrecadação propiciada pela empresa (royalties, ICMS) dá uma grande contribuição. A empresa é vista, freqüentemente, como um ator de grande poder que participa de um padrão predatório de uso do território.


O licenciamento ambiental e a eclosão de conflitos


Os primeiros movimentos do processo de licenciamento ambiental do Projeto Mexilhão ocasionaram grande ruído na região e fora dela, por remobilizarem as tensões presentes nesse quadro regional. O elemento deflagrador foi a discussão inicial em audiência pública conduzida pelo IBAMA, no final do ano de 2006, que viria frustrar a expectativa por um debate mais aprofundado em torno do investimento.


Alguns meses antes, um debate no interior do Comitê de Bacias Hidrográficas da região a respeito da conjuntura de novos investimentos governamentais gerou uma manifestação de preocupação com possíveis efeitos sinérgicos do conjunto de intervenções, desdobrando-se em novos impulsos a movimentos migratórios e ocupações desordenadas, motivados pela busca de oportunidades de trabalho ofertadas pelas obras anunciadas.


Além do Projeto Mexilhão de gás, a cargo da Petrobras, o governo estadual divulgava a perspectiva iminente de empreender a duplicação da Rodovia dos Tamoios, que liga São José dos Campos a Caraguatatuba; a ampliação do Porto de São Sebastião; e a construção de um Centro de Detenção Provisória em Caraguatatuba.


Surgiu como palavra de ordem, unindo ambientalistas não governamentais e representantes de agências de governo presentes no Comitê de Bacia, a idéia de promover uma avaliação ambiental estratégica sobre efeitos combinados do referido conjunto de grandes investimentos. Aliás, este efeito combinado está assinalado como fonte de preocupação no próprio RIMA de Mexilhão, conferindo veracidade a esta impressão difusa.


Os encaminhamentos das agências governamentais de gestão ambiental viriam frustrar tais expectativas de obter um bom equacionamento dos desdobramentos territoriais do conjunto dessas intervenções. Bem ao contrário, a análise dos impactos ambientais do Projeto Mexilhão seria compartimentada. Contando com diferentes escritórios técnicos para realizar as análises, o IBAMA determinaria que fossem elaborados e apresentados dois EIA-RIMAs, respectivamente para a parte marinha e para a parte terrestre de Mexilhão.


Um outro estudo de impacto, submetido ao licenciamento do governo estadual, cobrirá a linha de “C5 +” (produto chamado de condensado ou gasolina natural) entre a base de Caraguatatuba e o terminal de São Sebastião.


A lógica (?) da burocracia de governo, levando a compartimentar uma análise que deveria ser integrada para poder apoiar uma discussão global sobre o empreendimento, foi entendida por vários grupos ambientalistas como uma manobra da empresa para facilitar a aceitação do seu projeto. Não houve comunicação ao público sobre a responsabilidade por tal decisão ou sobre as razões para a mesma. Em contexto de conflito, isso deu lugar a uma percepção que gerou animosidade em relação à Petrobras, amplificando temores.


Outro procedimento do IBAMA gerador de acirramento de ânimos foi a má organização e condução das audiências públicas de apresentação dos EIA-RIMAs. Em tais situações, há normalmente um tempo inicial para exposição do projeto em questão e dos respectivos estudos ambientais, para posteriormente passar-se à fase de debates com abertura de inscrições ao público presente.


Nas audiências relativas ao Projeto Mexilhão, não houve controle do tempo, protelando-se a abertura da palavra a representantes de entidades da sociedade civil, o que levou ao esvaziamento da reunião antes que pudessem ser apresentados encaminhamentos, críticas ou questionamentos. Aparentemente, estava-se apenas cumprindo a formalidade da comunicação e discussão com o público, sem efetivamente respeitar os direitos de participação.


Tal desempenho, especialmente na primeira audiência pública, gerou revolta e predisposição para caracterizar o processo de licenciamento como algo viciado, sem efetividade e independência de análise.


Depois da primeira audiência, a Petrobras tomou a iniciativa de organizar reuniões públicas de esclarecimento sobre o Projeto, dirigidas a segmentos do público regional: pescadores, comerciantes, governo e legislativo, ambientalistas. Este último agrupamento reagiria frontalmente, negando-se a simplesmente participar da dinâmica de reuniões propostas pela empresa e contrapondo um conjunto de reivindicações focadas na forma de discussão e acompanhamento das ações de Mexilhão, de forma a construir transparência na avaliação do projeto.


Esquematicamente, a pauta de encaminhamentos proposta pelas entidades ambientalistas da rede do litoral norte (REALNorte) tem como principais conteúdos:


Representação esquemática: pauta de interesses manifestados pelos ambientalistas


Em relação ao projeto
  • interesse em discussão franca de impactos e alternativas
  • interesse em acesso à informação, durante licenciamento e implantação
  • discussão dos programas ambientais (mitigações, compensações) e exercer influência na concepção e formas de implantação
  • cuidados especiais com Unidades de Conservação (UCs) afetadas
Em relação à região
  • necessidade de avaliação ambiental estratégica dos impactos

  • medidas para controlar a   expansão da migração

  • medidas para evitar/minimizar impactos negativos sobre atividade turística


Explorando alternativas de posicionamento por parte da empresa


O posicionamento da empresa em relação aos interesses manifestados pelos ambientalistas pode ser mapeado de diferentes maneiras, conforme a empresa siga uma linha de restringir-se ao cumprimento da legislação, atendo-se aos procedimentos prescritos dentro do licenciamento; ou alternativamente, caso opte por ir além do exigido em lei e adotar iniciativas voluntárias, acordadas em processo de diálogo.


Tópico: Interesse em ampla participação na discussão do projeto e seus impactos

 

Encaminhamento Resultado prático Efeitos no relacionamento
Processo de licenciamento: rotina das audiências públicas Limitação da discussão, processo pobre de expressão Frustração, agressividade, desconfiança
Iniciativa voluntária de promoção de diálogo Diálogo amplo, esclarecimentos das dúvidas, aproximação da percepção do público com a dos técnicos

Redução de temores
Ampliação de confiança

Possibilidade de incorporar sugestões de aperfeiçoamento no projeto

Tópico: garantia de acesso à informação sobre andamento do projeto e das operações


Encaminhamento Resultado prático Efeitos no relacionamento
Processo de licenciamento: Conteúdo das licenças Licenças não privilegiam mecanismos de prestação de contas ao público

Desconfiança
Medo do perigo

Indignação
Iniciativa voluntária de promoção de diálogo Fundação de processo de prestação de contas e acompanhamento de planos de gestão pelo público Público se familiariza com questões técnicas.
Público conhece procedimentos de gestão.
Ampliação de confiança Possibilidade de cooperação.

Tópico: discussão dos programas ambientais (mitigações, compensações)


Encaminhamento Resultado prático Efeitos no relacionamento
Processo de licenciamento: Órgão ambiental normatiza o desenvolvimento dos programas Público regional afastado da concepção e da implantação dos programas Programas ambientais não necessariamente são reconhecidos como adequados e podem ser vistos como desperdício de
Ação voluntária de apresentar projetos e incorporar sugestões Entidades locais apresentam contribuições para concepção e eventualmente para realização das atividades Investimento pode ser reconhecido como ação de melhoria ambiental e gerar sinergia com iniciativas sustentáveis: porta para parcerias

Tópico: cuidados nas áreas de influência das Unidades de Conservação


Encaminhamento Resultado prático Efeitos no relacionamento
Licenciamento: estabelece ações mitigadoras Medidas pontuais de redução de efeitos negativos Caso as medidas sejam limitadas, projeto é percebido como negativo
Diálogo e parcerias voluntárias para viabilizar / aperfeiçoar planos de gestão das UCs UCs se consolidam e melhoram seu padrão de gestão

Empresa pode ser percebida como parceira para melhorar situação das UCs


Tópico: Efeitos Regionais Combinados do Projeto com Outros Grandes Projetos Anunciados


Encaminhamento Resultado prático Efeitos no relacionamento
Licenciamento: análise pontual, vê o projeto isoladamente Medidas mitigadoras de impacto não abrangem efeitos sinérgicos Projeto da empresa percebido como parte de um novo ciclo de devastação
Iniciativa voluntária de aderir e apoiar proposta de avaliação ambiental estratégica Disponibilização para público regional e para autoridades de diagnóstico abrangente e suporte a planejamento

Empresa torna-se parceira para ação mais eficaz de ordenamento da dinâmica territorial


Tópico: estímulo ao fluxo migratório pela notícia das oportunidades de trabalho


Encaminhamento Resultado prático Efeitos no relacionamento
Licenciamento: previsão de ações pontuais (exemplo: programa de comunicação) Medidas mitigadoras aquém dos efeitos sinérgicos Na percepção de setores do público:
empresa não assume responsabilidades balanço negativo sobre custo x benefício do projeto
Apoio voluntário a debate regional sobre o problema e possíveis políticas para enfrentá-lo Identificação de políticas públicas adequadas Melhoria do entendimento do público sobre o fenômeno e as responsabilidades dos diferentes atores Empresa pode se posicionar como um dos atores favoráveis ao enfrentamento do problema

Tópico: impactos sobre a atividade turística


Encaminhamento Resultado prático Efeitos no relacionamento
Licenciamento: estabelecimento de medidas tópicas Mitigação aquém dos efeitos sinérgicos Presença da empresa na região percebida como negativa para este ramo de atividade econômica
Iniciativa voluntária de estímulo a turismo sustentável Capacitação de gerentes e apoio à viabilização de projetos de turismo sustentável

Porta aberta para associar a empresa a novo padrão técnico, sustentável, de aproveitamento dos recursos ambientais da região


Discussão: o foco dos interesses da empresa e a delimitação das iniciativas voluntárias para construção de relacionamentos


A estruturação de cenários de negociação com base na abordagem dos ganhos mútuos deve se apoiar no estudo dos interesses das partes e na visualização de uma zona de possíveis acordos (zopa), um campo sobre o qual é possível construir convergências (Susskind et al., 2000).


Os elementos trazidos nesse trabalho permitem identificar uma zona de possíveis acordos entre Petrobras e entidades ambientalistas do litoral norte paulista, um conjunto de encaminhamentos com base em iniciativas voluntárias de diálogo e parcerias que podem ser viáveis e promissoras, no sentido de trazerem resultados que contribuam para a construção de relações de confiança e cooperação com o público, iniciando por estas entidades.


Essa alternativa estratégica poderia ensejar, gradativamente, um novo posicionamento no cenário global de conflitos ambientais na região, de forma a que a empresa participe no equilíbrio geral de forças como um ator pró Sustentabilidade.


Modelo esquemático: posicionamento da Empresa no quadro de conflitos ambientais



A imagem acima representa a articulação de uma coalizão pró Sustentabilidade em escala regional, na qual torna-se possível pensar, a nosso ver, com a participação da empresa, uma vez que a mesma repense sua estratégia de gestão de forma a redesenhar suas alianças com os diferentes atores.


Um tema importante nessa discussão de estratégias potenciais é encontrar o foco da aplicação das energias da empresa. Essa questão vem freqüentemente à tona quando se discutem as questões de relacionamento da empresa com stakeholders (Puppim de Oliveira, 2008). A preocupação é com uma eventual dispersão de recursos e energias, caso as iniciativas de cidadania e responsabilidade social não estejam “coladas” no eixo de interesse dos negócios.


Na realidade analisada nesse trabalho, aflora como interesse prático da empresa a construção de relações menos conflituosas com o público. As resistências ao novo projeto decorrem, em parte, do stress já acumulado em função do histórico anterior. Cenários em que tais resistências possam eventualmente evoluir para iniciativas de judicialização das decisões sobre licenças, implicam em tempos excessivamente longos, do ponto de vista dos empreendimentos, para avançar nos cronogramas de implantação.


Não há por que esperar que este seja o último investimento da empresa na região, por outro lado. Ou seja, a relação construída hoje afetará o índice de resistência a novas iniciativas produtivas no futuro, interessando trabalhar para atenuar o fenômeno de percepção negativa das operações.


Trabalhar com substâncias perigosas é uma característica central da atividade da empresa, a requerer um adequado sistema de gestão. Por mais que evolua o padrão técnico da gestão de segurança, meio ambiente e saúde de suas equipes, a empresa necessita de interlocutores externos para este processo de gerenciamento dos riscos. A qualquer acidente, a eficácia do plano de resposta, a assimilação dos impactos de forma mais ou menos agressiva, por parte do público, ou o controle do pânico junto à população das áreas de influência, são dimensões que levam a empresa a ter interesse objetivo na capacitação dos atores institucionais e não institucionais para o que podemos chamar de gerenciamento social dos riscos.


Muitas questões da manutenção e recuperação da qualidade ambiental na região são interesses diretos da segurança ambiental das operações da empresa. Melhorar a capacidade de ordenamento da ocupação do território por parte das autoridades locais serve para evitar que se multipliquem ou se agravem as situações em que grupos humanos se assentam nas imediações de instalações perigosas.


Contribuir para implantar os esquemas de gestão das Unidades de Conservação – como o Parque Estadual da Serra do Mar – ajuda a evitar fenômenos que em vastos trechos geram ameaças às redes técnicas da empresa. O desmatamento é desestabilizador dos solos que recobrem a escarpa da serra, sendo assim fator de ampliação dos riscos em relação aos dutos de petróleo, derivados, gás, que cortam a Serra do Mar em vários pontos, na transversal ou acompanhando a linha geral de costa.


Em relação à reputação da empresa, um ativo intangível hoje valorizado em sua visão de negócio, cabe ressaltar que o litoral norte paulista integra a Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, uma unidade vinculada à Unesco, e que abrange 17 estados brasileiros. Isso representa um potencial singular de repercussão, para acertos ou desastres de gestão.


A alternativa de estabelecer parcerias associadas a inovações de gestão, evidenciando para a sociedade um padrão de excelência técnica e um compromisso em dar as mãos a outros setores regionais para que essa excelência “contamine” positivamente o desempenho dos outros atores relevantes, pode configurar uma estratégia de ganhos mútuos de forte visibilidade, cujo eixo é uma nova forma de assimilar a questão do desenvolvimento sustentável. Abre-se a possibilidade da empresa ultrapassar o tradicional contraponto entre investimento e benefícios econômicos, e impactos ambientais negativos.


A nova perspectiva é associar um investimento com gestão ambiental avançada a parcerias para melhorar o padrão regional de governança, pela via de processos de diálogo. Não se eliminam os pontos em que o investimento de produção de gás gera questionamentos por parte dos ambientalistas, mas se inova ao garantir que tais questões sejam encaminhadas com base no amplo acesso à informação, permitindo a checagem dos resultados. Paralelamente, constrói-se uma pauta mais ampla em que o interesse na recuperação da qualidade dos ambientes regionais pode ser compartilhado.


As iniciativas da empresa de promover reuniões adicionais de esclarecimento sobre o Projeto Mexilhão geraram uma primeira rodada de diálogo com grupos locais, inclusive as entidades ambientalistas. Superadas as tensões iniciais, ambas as partes dispuseram-se a investir no prosseguimento desse processo extra-licenciamento. Foram lançadas as bases para um processo de diálogo em busca das prioridades para o desenvolvimento sustentável do litoral norte paulista.


Com a análise aqui desenvolvida, pretende-se ter oferecido a evidência de que ambas as partes diretamente envolvidas nesse processo têm ganhos a esperar de iniciativas voluntárias que permitam ultrapassar os limites das medidas de comando e controle. As audiências públicas associadas aos processos de licenciamento sofrem severas limitações como dinâmicas para esclarecimentos ao público e incorporação de propostas e reivindicações a respeito dos planos em fase de análise. Os encaminhamentos da burocracia ambiental podem mesmo contribuir para acirramento do clima de conflito, caso não garantam – como nos episódios aqui discutidos – direitos dos diferentes segmentos interessados.


O prosseguimento do Diálogo para a Sustentabilidade do litoral norte paulista, protagonizado pela Petrobras e pelo conjunto de entidades ambientalistas da região, oferecerá importantes subsídios para o entendimento de alternativas de posicionamento empresarial em relação à Sustentabilidade. A (re) construção de relacionamentos da empresa com o público se associa fortemente, nessa leitura, com a compreensão da responsabilidade em relação aos conjuntos de recursos comuns, e ao entendimento da necessidade de investir na capacitação de interlocutores locais para os processos de gestão, a partir do acesso à informação.


Bibliografia


ALMEIDA, F. O Bom Negócio da Sustentabilidade. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002.


----------------- Os Desafios da Sustentabilidade. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007.


ANDRADE, J. C. Conflito, Cooperação e Convenções: A Dimensão Político-Institucional das Estratégias Sócio-Ambientais da Aracruz Celulose S.A. (1990-1999). Salvador: Escola de Administração da UFBA, 2000. (Tese de Doutorado)


BARBIERI, J.C. Gestão Ambiental Empresarial: Conceitos, Modelos e Instrumentos. São Paulo: Saraiva, 2004.


BIODINÂMICA – RIMA da Unidade de Tratamento de Gás de Caraguatatuba. Abril de 2006.


CMMAD - COMISSÃO MUNDIAL SOBRE MEIO AMBIENTE E DESENVOLVIMENTO. Nosso Futuro Comum. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1988.


CUNHA, I. A. Conflito ambiental na costa de São Paulo: o Plano Diretor de São Sebastião. Associação Paulista de Saúde Pública. Saúde e Sociedade, 10 (1), 15-32, jan. jul/ 2001. São Paulo.


----------- Política Ambiental Local, Negociação de Conflitos e Sustentabilidade: Sebastião, Costa Norte de São Paulo. In Abramovay, R. Construindo a Ciência Ambiental. São Paulo: Annablume/Fapesp, 2002.


----------- Empresa, Recursos Comuns e Estratégias de Sustentabilidade: Operações da Petrobras na Mata Atlântica em São Paulo. In: De Sordi, O. e Cunha, I.A. (Orgs.) Organização e Gestão de Negócios. Santos: Leopoldianum, 2006.


CUNHA, I. A. e JUNQUEIRA, L. Governança Ambiental e Gerenciamento Social dos Riscos. In Gonçalves, A. e Rodrigues, M.A. (Orgs.) Direito do Petróleo e Gás – Aspectos Ambientais e Internacionais. Santos: Leopoldianum, 2007.


DE MARCHI, B. Comunicação e Informação de Riscos: a Experiência da Comunidade Européia com os Grandes Acidentes Industriais. In Porto, M. e Freitas, C. (orgs.) Problemas Ambientais e Vulnerabilidade: abordagens integradoras para o campo da Saúde Pública. Rio de Janeiro: CESTEH/ENSP/FIOCRUZ, 2002.


HABTEC. RIMA da Atividade de Produção de Gás e Condensado, no Campo de Mexilhão, Bacia de Santos – SP. Revisão 02, Fevereiro de 2007.


LEIS, H. Um Modelo Político-Comunicativo para Superar o Impasse do Atual Modelo Político-Técnico de negociação Ambiental no Brasil. In: Cavalcanti, C. (org.). Meio Ambiente, Desenvolvimento Sustentável e Políticas Públicas. São Paulo: Cortez/Recife: Fundação Joaquim Nabuco, 1999.


LITTLE, P. Os Conflitos Socioambientais: um Campo de Estudo e Ação Política. In Bursztin, M. (org.) A difícil sustentabilidade - política energética e conflitos ambientais. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2001.


OECD – Organisation for Economic Co-operation and Development. OECD Guiding Principles for Chemical Accident Prevention, Preparedness and Response. Paris: OECD, 2003.


PETROBRÁS - Diagnóstico Participativo do Município de Caraguatatuba. São Paulo, Dezembro de 2006.


PNUMA – Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. APELL para zonas portuárias. Londres: OMI/PNUMA, 1996.


POFFO, I. Vazamentos de Óleo no Litoral Norte do Estado de São Paulo: Análise Histórica (1974 a 1999). São Paulo, 2000. Dissertação de mestrado apresentada ao PROCAM, USP.


PUPPIM de OLIVEIRA, J. A. Empresas na Sociedade: Sustentabilidade e Responsabilidade Social. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.


PUTNAM, R. The Prosperous Community: Social Capital and Public Life. The American Prospect, n. 13, 1993.


SACHS, I. Estratégias de transição para o Século XXI – Desenvolvimento e Meio Ambiente. São Paulo: Estudio Nobel / FUNDAP, 1993.


------------- Desenvolvimento Includente, Sustentável, Sustentado. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.


SÃO PAULO (ESTADO) . SECRETARIA DO MEIO AMBIENTE. Litoral Norte. Litoral Norte: história. Patrimônio natural, histórico, étnico, cultural e paisagístico. Caracterização socioambiental. Zoneamento ecológico econômico. Legislação. São Paulo: SMA, 2005.


SUSSKIND, L.; FIELD, P. Em Crise com a Opinião Pública. São Paulo: Futura, 1997.


SUSSKIND, L. et al. Negotiating Environmental Agreements. Washington: Island Press, 2000.


VIOLA, E. e LEIS, H. A Emergência e Evolução do Ambientalismo no Brasil. In Leis, H. O Labirinto: ensaios sobre Ambientalismo e Globalização. São Paulo: Gaia, Blumenau: FURB, 1996.